São Paulo, domingo, 13 de março de 1994
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Wim Wenders faz elogio à narração em "Uma Vez"

AMIR LABAKI
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Wim Wenders não pára. Um curta lançado na França há um mês e um longa em finalização para o segundo semestre dão continuidade à sua filmografia, que tem recentemente colecionado alguns de seus mais fracos títulos. Mas a originalidade do artista e pensador Wenders reaparece em plena forma em seu novo livro, "Uma
Vez", lançado na Europa no final do ano passado.
"Uma Vez" é o segundo livro fotográfico de Wenders. Em "Written In the West" (1987), o cineasta alemão já havia recolhido num ensaio fotográfico a pesquisa
que realizara para preparar "Paris, Texas" (1987). Se há, como veremos, uma continuidade no estilo do Wenders fotógrafo, a elaboração do objeto livro é contudo aqui sensivelmente superior. A tênue curva dramática observada em "Written" cede lugar para um trabalho narrativo muito mais sofisticado, que além de combinar palavra e imagem problematiza a própria narração.
Com um título estudadamente ambíguo, "Uma Vez" é ao mesmo tempo um livro de fotografias e de curtas narrativas autobiográficas, inspiradas pelas fotos. Assim, por um lado "Uma Vez" resume o encanto da fotografia segundo Wenders, "uma ação sem consequências, que acontece num único instante e dentro de uma relação entre o olho e a máquina fotográfica". De outro, eis Wenders reenfocando a questão da narração ("era uma vez"), contando "uma história por minuto".
Cada foto ou série se faz acompanhar de textos em geral breves.
Não se trata de legendas ou explicações. Texto e imagem se defrontam, páginas pares para o primeiro, ímpares para o segundo, e se completam. Há um único texto autônomo, na metade final do livro.
"Uma vez, não trazia comigo minha máquina fotográfica", adianta Wenders na primeira linha, para prosseguir contando a história de um encontro num bar de Hollywood com um desconhecido halterofilista que celebra sua escolha para interpretar Supermouse no cinema.
É este o padrão: narrativas sucintas, fragmentárias, memorialísticas.
A idéia de instantâneo perpassa todas as fotos. Curiosamente, contudo, Wenders abre mão do imediatismo da polaroid, sua companheira inseparável nos anos 70, em favor da técnica tradicional, optando pelo registro em negativo como uma espécie de pausa para reflexão. Dois tipos de fotos predominam: o estudo de paisagem e o flagrante urbano. Em ambos, o impacto da fotografia americana contemporânea é evidente.
As paisagens-locações de Wenders sempre remetem a Robert Adams e o contraponto entre o poder da natureza e a intrusa obra humana. Já Wenders na cidade dialoga com mestres do episódico como Robert Frank, William Klein e Bruce Davidson. Há assim o último cowboy texano, a deusa do sol novaiorquino, protestantes russos, sagrados anônimos de todo tipo.
Só não há alemães ou a Alemanha. –"viajar é meu maior prazer", continua reconhecendo o diretor de "Até O Fim do Mundo" (1991). É como se estatuto de estrangeiro garantisse uma pureza e um frescor no olhar fotográfico que permitisse a Wenders extrair de sua máquina imagens inéditas para um mundo saturado de imagens-clichê.
A luta contra a inflação imagética se dá também pela escolha do meio fotográfico. Tudo se passa como se, fatigado pelo efeito zapping das imagens em movimento que tudo pasteurizam, Wenders retornasse à unicidade e à concretude da foto impressa, visando frear o olho e a mente e restabelecer a contemplação reflexiva. Curiosamente, com este gesto Wenders retoma por outros meios seus primeiros exercícios cinematográficos em curtas como "Schauplatze" (1967) e "Silver City" (1969), nos quais a recusa à narração era a estratégia de um ainda candidato a pintor que se aproximava do cinema como um novo meio de capturar o tempo através da imagem. A diferença básica entre esse Wenders pintor-cineasta e o fotógrafo-cineasta resume-se sobretudo ao recente elogio da narração, fundamental em "Uma Vez".
Não é a toa que o livro adota uma estrutura circular, começando e terminando na Austrália, respectivamente com uma árvore tarkovskiana e uma montanha fordiana.
Wenders é sempre fiel a seus mais díspares ídolos.

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