São Paulo, sexta-feira, 18 de março de 1994
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'Compadres' lembram 40 anos de música

CARLOS CALADO
DO ENVIADO ESPECIAL AO RIO

Em um encontro informal, anteontem 'a tarde, na casa da família Jobim, no Rio, os "compadres" Tom e Dorival lembraram a primeira gravação que fizeram juntos (em 1963), e passagens da amizade que os liga desde a década de 50. Leia a seguir trechos da entrevista exclusiva para a Folha. (Carlos Calado)
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Folha - Três décadas atrás vocês gravaram o histórico LP "Caymmi Visita Tom". Já eram amigos naquela época?
Dorival Caymmi - Já tínhamos uma convivência por causa do trabalho em boates e na televisão. Nos encontrávamos muito na Carreta, uma churrascaria em Ipanema. Tinha muita casa noturna ali perto do Leme e de Copacabana. A gente se encontrava também no Beco das Garrafas, onde estava toda a gente da nova geração.
Folha - Nessa época já dava para imaginar que Tom chegaria onde chegou?
Caymmi - Dava sim, de primeira. Quando o Tom apareceu e mostrou o dedo mindinho já se conheceu o gigante. Eu estava sempre por ali, na boca do Veloso, entre o Leblon e Ipanema. Foi a surpresa total quando ouvi "Desafinado" e todas aquelas novidades. Aloysio de Oliveira também vinha falar comigo sobre a garotada e a conversa sempre dava no Tom. Ontem eu estava vendo uma fotografia daquele show histórico no restaurante Au Bon Gourmet, que tinha João Gilberto, Vinícius, Os Cariocas e Tom. Foi uma maravilha. O Tom está lá, com o cabelo escondendo a cara e aquelas bossas dele . O Tom é cheio de bossa.
Folha - E como Tom via o gigante Dorival Caymmi?
Tom Jobim - Eu estou encarregado pelo Almir Chediak de escrever o prefácio do "Songbook Dorival Caymmi". Vou chamá-lo de gênio para cima. Sempre tive muita admiração pelo Dorival.
Caymmi - Eu não me lembro. Poderia fazer folclore e dizer que cheguei no Veloso, entrei e o Tom estava sentado no piano. Mas não foi assim (risos).
Jobim - Eu lembro. Já amava o Dorival quando escutava a rádio Mayrink Veiga. Ele cantava aquelas canções sobre o mar e eu, que era garoto, ficava perplexo diante de tanta beleza. Assim, fiquei admirando Dorival. Um dia, eu ainda era magrinho, estava andando pela avenida Rio Branco e vi Dorival sentado no Café Simpatia.
Caymmi - Ah, é mesmo...
Jobim - Tinha umas cadeiras de vime na calçada. Ali se tomava um refresco branco de côco e tinha um bom choppinho também. Ele estava ali, sentado com outros figurões. Isso deve ter sido no princípio dos anos 50, quando Dorival gravava na Odeon. Ainda tinha discos em 78 rotações.
Caymmi - Agora vamos fazer uma troca de puxadas. Quando vi você fiquei surpreendido. Eu não sabia que Tom era um menino. Para o talento que apontava ali, eu não imaginava alguém tão jovem.
Jobim - Depois nos encontramos outras vezes e, anos mais tarde, a gente fez o disco "Caymmi Visita Tom".
Folha - O que aquele disco significou para vocês?
Caymmi - Para mim foi muito importante. Foi idéia do Aloysio de Oliveira, que tomou esse lado familiar da nossa relação. Me lembro de uma visita de aniversário, parecida com esta, quando o Paulinho e o Danilo ainda eram meninos. Tipo amizade de bairro. Ficou um disco muito gostoso.
Folha - Tom vai retribuir essa visita na comemoração de 80 anos de Caymmi?
Caymmi - Em princípio, não há essa formalidade de pagar a visita. O que acontece entre nós nasce do imprevisto. Como uma vez, em que fui à casa de veraneio de Tom, em Búzios. Estávamos ali com os meninos, lendo jornal e ele se recostou e dormiu. Eu achei aquele um dos momentos poéticos mais lindos da vida. É preciso ter um olho especial para esses momentos. E eu sou bem-dotado nesse particular (risos).
Jobim - Sem dúvida, Dorival é muito bem-dotado, para ver e para ouvir. Nesse disco que estamos fazendo, gravamos uma música linda do Caymmi, "Maricotinha", que a Gal Costa também está querendo gravar.
Folha - Como vocês encararam a polêmica sobre o carnaval do Rio e o da Bahia?
Jobim - Eles inventam coisas sinistras, malvadas. Foi como o negócio da Gal Costa. Como ela canta muito bonito, o cara fala mal do vestido, depois fala mal do não-vestido. Eles querem é falar mal, são detratores.
Folha - Essa suposta disputa entre Rio e Bahia existia no tempo em que vocês se conheceram?
Jobim - Não tinha não. O Aloysio de Oliveira vinha de família baiana e o Vinicius de Moraes também. Eu sou primo do Vinicius, mas minha família foi para o Ceará. O resto é do Sul: meu pai era gaúcho e meu avô era paulista.
Caymmi - Isso é bobagem. Na verdade, o que se quer é polêmica. Dois anos atrás quiseram me envolver com um caso da Bahia com o qual eu não tinha nada a ver.
Folha - A polêmica sobre a axé music...
Caymmi - É, mas eu disse que não tenho o "achador" aberto. Eu não "acho" nada (risos)
Jobim - Você não "axé" nada, não é Dorival? (risos) O Dorival Caymmi não é compositor de música baiana. Não é só isso não. Ele é compositor de música. O pessoal quer rotular para fazer confusão.
Caymmi - Eu já tive uma experiência bem desagradável. Nos anos 40, eu fiquei um tempo na Bahia, voltando de um contrato no Ceará, mas não sabia que já era famoso. Um rapaz perguntou quanto eu cobrava de cachê, querendo saber se eu podia trabalhar na rádio Sociedade da Bahia. Eu disse alguma coisa em torno de cinco contos de réis. No dia seguinte saiu uma campanha assim: "Dorival Caymmi pede fortunas para cantar na terra que lhe deu inspiração".
Jobim - É o que o Chico Buarque me disse outro dia. Ganhar dinheiro trabalhando não é permitido aqui, mas o sujeito nascer rico tudo bem (risos).

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