São Paulo, sexta-feira, 18 de março de 1994
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'Short Cuts' revira entranhas da América

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

O que parecia um contra-senso, afinal deu certo: os relatos enigmáticos, paradoxais e lacônicos do minimalista Raymond Carver, aparentemente refratários a adaptacões cinematográficas, não se chocaram com a exuberância de Robert Altman. O que no papel era miniatura e música de câmera virou na tela afresco e sinfonia. Sem, no entanto, abrir mão de sua essência irônica e pessimista. Com "Short Cuts - Cenas da Vida", Altman retoma os atalhos que conduzem à sua polifônica obra-prima, "Nashville".
Altman poderia ter feito uma adaptação convencional, ao estilo "Grande Hotel", valendo-se das histórias de Carver sob a forma de episódios. Preferiu, contudo, cruzar e sobrepor seus personagens, mediante artifícios engenhosos: ora um encontro casual, ora uma deixa de diálogo, ora um objeto que se liga a outro, ora uma conciliação de interesses, ora um caso de adultério. Dá gosto ver como ele manipula o ritmo e os espaços com uma montagem sutilmente analógica e uma câmera inquieta e perscrutadora. Não é menos inventiva a maneira como explora e justapõe as afinidades, os contrastes e os "moods" dos seus personagens.
Como em "Nashville", "Mash" e "O Jogador", são numerosos os personagens (24 ao todo) e juntá-los não foi tarefa das mais fáceis, até porque não os unia uma comunhão de interesses, como em "Nashville" (música country), "Mash" (guerra) e "O Jogador" (cinema). O elemento aglutinador, desta feita, é algo mais fluido, a cidade de Los Angeles, complexo demográfico exemplar de uma América brega, neurótica –e em permanente estado de alerta. Afinal de contas, a qualquer momento, um terremoto pode acabar com aquilo tudo.
Se "O Jogador" começava com um longo plano-sequência, numa confessa homenagem ao prólogo de "A Marca da Maldade", de Orson Welles, as primeiras tomadas de "Short Cuts" lembram a invasão do Vietnã pelos helicópteros de "Apocalypse Now". Só que agora, as valquírias cavalgam sobre Los Angeles, espalhando, não bombas de Napalm, mas pesticida. Há uma guerra em curso contra os mosquitos que destroem as frutas do sul da Califórnia –mas, apesar de benigna, ela se torna mais grave para os habitantes de Los Angeles do que a guerra na ex-Iugoslávia, mostrada todas as noites na televisão.
Tudo tem início na noite de uma quarta-feira e só termina na segunda-feira seguinte. Na abertura, o vôo dos helicópteros –no desfecho, uma revoada de morcegos, escapulidos da caverna onde supostamente era filmada a série de TV "Batman". Esta é uma das muitas rimas que o filme oferece à percepção do espectador. Outras há com elementos naturais (céu e água), simbólicos (tintas de pintura e maquiagem, fumaça de churrasqueira e cano de descarga) e até bichos (peixes de aquário, trutas) –nenhuma forçada nem ostensiva.
"Short Cuts" põe em xeque um vasto espectro de culpas e paranóias. Seus personagens morrem de medo da contaminação, da solidão, da sinceridade e se escondem atrás de máscaras, às vezes até literalmente, como é o caso de Claire (Anne Asher), que ganha a vida como palhaço de festas infantis. Claire faz um curioso contraponto com Bill (Robert Downey Jr.), maquiador profissional que se diverte tirando fotos mórbidas de sua namorada, devidamente maquiada como se tivesse sido estuprada e morta por algum tarado. Morte e sexualidade são temas tão fortes e recorrentes no filme quanto o disfarce e a mentira, o falso e o verdadeiro.
"Short Cuts" também põe em xeque a hipocrisia e o moralismo hollywoodianos ao expor sem subterfúgios a nudez frontal da atriz Julianne Moore, ao não se desviar da frente de Fred Ward quando este abre a braguilha para fazer xixi e, acima de tudo, ao deixar que Jennifer Jason Leigh diga, ao telefone, para os seus clientes, as obscenidades mais cabeludas jamais ouvidas num filme não pornográfico produzido na América. Talvez por tudo isso não o colocaram entre os cinco candidatos ao Oscar. A meu ver, "Short Cuts" merecia pelo menos quatro estatuetas: as de melhor filme, melhor direção, melhor roteiro adaptado e melhor montagem (Geraldine Peroni).

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