São Paulo, domingo, 20 de março de 1994
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De olho nos títulos

JUNIA NOGUEIRA DE SÁ

Um leitor de São Paulo telefonou na terça-feira e me pediu que desse uma olhada na Folha e em "O Estado de S.Paulo". Os dois jornais tinham notícia completamente diferente sobre a mesma pessoa, a respeito da mesma situação. Na Folha, o senador Mário Covas (PSDB- SP) surgia numa pequena reportagem da página 1-7 dizendo que uma aliança entre seu partido e o PFL seria "extremamente adversa", e desagradaria eleitores dos dois lados. O título da reportagem: "Covas é contra aliança com PFL".
No "Estado", chamada na capa do jornal informava: "Covas diz aceitar aliança com PFL". Na página A8, uma entrevista do senador trazia frases inequívocas, como "não vou me opor se o partido decidir pela aliança". O leitor suspirou desanimado do outro lado da linha. "Em quem eu devo acreditar?"
Leio de quatro a seis jornais por dia (o chamado dever do ofício), mas na maior parte das páginas faço o que todo leitor faz, dou uma passada de olhos nos títulos e sigo em frente. Por isso, muitas vezes fico com a mesma dúvida desse leitor -quando não me sobram dúvidas piores ainda. No caso específico das declarações de Covas, foi possível ver que a Folha tirou conclusões precipitadas, porque uma releitura da reportagem deixa ver que o senador não disse ser "contra" a aliança. O "contra" foi parar no título por obra do jornal. Nada do que vinha abaixo desse título, aliás, o sustentava. Foi descuido, o chamado "erro de acabamento" que compromete a credibilidade de um jornal e abusa da paciência do leitor. Teoricamente, um título deveria resumir o aspecto mais importante ou interessante da reportagem que introduz. Na prática, vale o chavão: a teoria tem sido bem outra.
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O exemplo levantado pelo leitor de São Paulo expõe a fragilidade de uma imprensa onde frequentemente títulos de reportagens e reportagens propriamente ditas não se entendem. Na semana passada, a Folha chegou a escrever numa manchete (na quinta- feira): "FMI dá apoio a Fernando Henrique". Nada na boa cobertura feita pelo correspondente do jornal em Washington deixava ver que o fundo tivesse dado qualquer tipo de respaldo a Fernando Henrique-ele-próprio, seja como ministro ou candidato ao Planalto. O correspondente não escreveu isso na Folha -e se enviou essa informação em seu despacho, ela não esteve nas páginas do jornal.
A reportagem revelava que havia, sim, uma nota de apoio ao plano econômico do governo. Mas depois de anos de negociações entre o Brasil e o FMI qualquer jornalista sabe que as atitudes políticas (às vezes, só polidas) de seus dirigentes não implicam realizações práticas. A reportagem revelava também que, apesar da nota, não há acordo à vista. Há promessa de acordo, se a promessa de plano de estabilização caminhar. De onde, então, a Folha tirou sua manchete? Onde foi que ela viu o apoio a Fernando Henrique que trombeteou? Não tive o que responder a um outro leitor que me perguntou.
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Boa parte dos leitores lêem apenas títulos nos jornais, e mergulham nas reportagens apenas quando elas lhe interessam. Por essa razão, conhecida e reconhecida em qualquer redação do planeta, a imprensa deveria ter mais cuidado com o que escolhe para colocar naquela linhazinha gritantemente solitária. Se um jornal como a Folha escreve, despreocupadamente, que o "PT não tem favoritos à eleição em 11 Estados", milhares de leitores podem achar que, nos outros, o partido de Lula está arrebentando nas pesquisas. Não está. Ou, se está, a pesquisa que gerou a manchete de domingo passado não revela. E acaba desinformando o leitor.
Que dizer, então, dos títulos que induzem o leitor a achar isto ou aquilo sobre determinados assuntos? Na edição de terça-feira, a Folha publicou pesquisa sobre a avaliação dos governos estaduais. Escreveu que "Rejeição a Brizola já alcança 52% no Rio" e "Governo de Fleury é apenas regular". Tivesse seguido as próprias regras de seu Manual dispensando o "já" de Brizola e o "apenas" de Fleury, seus títulos poderiam sair em qualquer bom jornal do mundo. Mas ao "enfeitar" esses títulos, acrescentou a eles uma indesejável dose de opinionismo que só cabe em panfletos, nunca em jornais. Por causa de duas palavrinhas, o jornal deu a seu leitor o direito de desconfiar da isenção da Folha diante de Brizola e Fleury.
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Já escrevi aqui, antes, que os títulos da Folha são um ponto fraco -fraquíssimo- do jornal, e sua Redação precisa enfrentar esse problema se quiser fazer um bom produto. Se quiser fazer um jornal que poupe seu leitor de absurdos, obviedades e enunciados de dupla leitura, ou desinformativos, ou enganosos, ou falsos mesmo.
Se o leitor em casa quiser conferir o tamanho do problema, anote numa única edição todos os títulos que considerar ruins. O critério é simples: ruim é o título que não informa direito, ou não informa nada, ou ainda desdiz a reportagem que supostamente deveria apresentar. Faça um traço vermelho em volta dele e envie para a ombudsman. Semana que vem, volto ao assunto -se não ficar soterrada debaixo da montanha de páginas da Folha que os leitores certamente vão me enviar.

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