São Paulo, domingo, 20 de março de 1994
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DEBATE

MOACIR SCLIAR

Juntos, os dois liam a notícia no jornal.
– Eu acho que essa senhora fez muito bem em processar o cara, ela disse. Tinha quinze cabelos, cabelos pretos, e era muito bonita. –Você não acha?
– Eu não acho, ele disse. Tinha 18 anos e era office-boy. Os dois estavam namorando há umas semanas. – Esse negócio de virgindade para mim não está com nada. Você não acha?
– Eu não acho, ela disse. – Acho que para muitas mulheres a virgindade é uma coisa importante. Além disso, ela engravidou, ele não assumiu. É uma sacanagem, você não acha?
– Eu não acho, ele disse. Ela deveria ter tomado cuidado. Por que não usou a pílula? Você não acha que a mulher tem de se cuidar?
– Eu não acho, ela disse. Eu acho que os dois têm de tomar cuidado. E se uma criança nasce, é responsabilidade dos dois. Você não acha que ele, que era um cara rico, deveria pelo menos ter ajudado a moça? Você não acha que ele deveria ter feito alguma coisa pela criança?
– Eu não acho, ele disse. Mesmo porque os pais dele eram contra, ele não podia fazer nada. Namoradas a gente tem muitas, família é uma só, você não acha?
– Não acho, ela disse. Acho que...
Interrompeu-se. Acho que ele deveria ter dignidade, ela ia dizer, mas desistiu. Acho que esse negócio de dignidade é papo furado, ele talvez dissesse, e aí talvez brigassem, e aí talvez tudo terminasse. Resolveu falar em dignidade outra vez.
– Eu acho, ela disse, que está na hora de irmos embora.
Ele concordou. Mesmo porque, se ela falasse em dignidade, ele não saberia o que dizer.

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