São Paulo, domingo, 20 de março de 1994
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A Petrobrás e a raposa

ROGÉRIO CÉZAR DE CERQUEIRA LEITE

Um rito para anúncio de descobertas beneficia acionistas e evita especulação
"Que bela voz tem a senhora, dona gralha! Como ficaria eu contente de poder ouví-la nesta manhã de sol", disse a raposa. Envaidecida, abre o bico a orgulhosa ave, deixando cair o cobiçado pedaço de queijo que, apressadamente, engole a esperta raposa.
Anunciou a Petrobrás no dia 2 deste mês a descoberta de quatro novos campos de petróleo na Bacia de Campos, totalizando um bilhão de barris. Não é preciso ser um especialista em estatística para perceber que quaisquer que sejam a tecnologia, os meios e os ritos burocráticos, a probabilidade para as quatro descobertas deste porte simultâneas seria reduzidíssima, principalmente levando em conta que as reservas de Campos não haviam crescido apreciavelmente desde 1990. As raposas ficaram alvoroçadas, a gralha havia aberto o bico.
A Petrobrás apressou-se em dar informações mais precisas. Em primeiro lugar, verifica-se nos quadros que o rito burocrático é precário. O anúncio de descobertas, e estas são de pequenas reservas, se faz dezenas de dias depois do término da avaliação (40 em um caso), às vezes durante a avaliação e, eventualmente, mesmo antes desta ter começado, ainda durante o processo de perfuração.
A ausência de um critério consistente não é de interesse do acionista e do público em geral. É sabido que empresas privadas manipulam tais informações em seu próprio interesse financeiro. Mas uma empresa pública não deveria fazê-lo.
Não é, portanto, de se estranhar que tenha a Petrobrás anunciado a descoberta do supergigante Albacora-Leste um mês e meio após o término de sua avaliação, juntamente com o anúncio das outras três grandes descobertas, cujas avaliações ainda estavam em curso.
Uma possível razão para o tardio anúncio de Albacora-Leste é o fato de grande parte da reserva estar a uma lâmina d'água superior a 1.000 metros. Para esta profundidade não há ainda tecnologia de produção, embora tudo faça crer que as tecnologias atualmente usadas pela Petrobrás para profundidades em torno dos 800 metros possam ser adaptadas para até 2000 metros.
Para melhor entender a questão da pesquisa de lavra, perfuração e avaliação, usaremos uma analogia, perdoe-me o leitor, um tanto mórbida. Raio-X, ultrasom e técnicas não-invasivas permitem localizar e dimensionar anomalias em tecidos humanos. É, entretanto, necessário efetuar uma biópsia para determinar a natureza da anomalia.
A prospecção se inicia da mesma maneira, com técnicas de ultrasom ou similares, que permitem a delimitação de "anomalias" que, somadas a outras informações geológicas genéricas, permitem uma avaliação preliminar que autoriza ou não a perfuração, ou seja, o "biópsia".
Se aquele indício se concretiza e óleo aproveitável é observado, retomam-se os dados anteriores, podendo-se concluir que aquela extensão toda já delimitada tem grande probabilidade de conter petróleo economicamente. Faz-se, então, uma avaliação da extensão da reserva baseado naquela única perfuração, a observação concreta de óleo crú.
Ou seja, esta avaliação é equivalente à extrapolação que se faria para as dimensões de um câncer, a partir de uma biópsia pontual, e da extensão da sombra de uma radiografia. Médicos fazem exatamente isto. E também os geólogos em sua inferências, ou estimativas de reservas.
Conhecimento da tecnologia de levantamento geológico e das características específicas da Bacia de Campos permitem certamente à Petrobrás um relativo grau de precisão na avaliação das reservas. Entretanto, reservas só são realmente comprovadas quando uma distribuição adequadamente espaçada de perfurações é efetuada.
É claro que o grau de certeza cresce com a experiência naquela específica geologia e com o aprimoramento das técnicas de pesquisa sismica "não-invasiva". Assim sendo, apesar de a metade dos 10 bilhões de barris de petróleo ser constituída por reservas prováveis, mas não comprovadas, o grau de certeza é relativamente elevado.
Algumas lições devem, entretanto, ser extraídas deste episódio. A adoção de um rito explícito para anúncios de descobertas beneficiará os acionistas, evitará especulações na Bolsa e protegerá a Petrobrás como empresa. A adesão a normas rígidas e universais para o inventário das reservas, como aquelas propostas pelo Conselho Mundial de Energia, por exemplo, evitará que a própria Petrobrás se contradiga. "À mulher de Cesar não basta ser honesta...."
Este episódio serviu também para que a Petrobrás aumentasse mais um pouco a sua percepção de que é uma empresa pública e, como tal, muito frágil. Que seu principal, senão único suporte, é a vontade popular. E que, portanto, absoluta transparência é imprescindível.
Ninguém vai acreditar na Petrobrás porque um dia o presidente Geisel mandou acreditar. A adesão popular precisa ser conquistada, cotidianamente, ininterruptamente. E é com competência, com honestidade, que se vence esta batalha diária. É assim também no setor privado.
Tudo bem, a Petrobrás conquistou não apenas recordes internacionais e laureais com suas conquistas em tecnologia de águas profundas. Mas um significativo ganho financeiro e perspectivas de importante extensão de nossas reservas. Não pode deixar que desencontros formais e excesso de autoconfiança comprometam um futuro talvez brilhante.

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