São Paulo, domingo, 20 de março de 1994
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"Angels" faz catarse do declínio espiritual

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

Frank Rich, "o açougueiro da Broadway", crítico do "New York Times", foi quem cruzou o oceano para louvar "Angels in America" em Londres. Uma peça de um americano, sobre a América. E também uma peça sobre a Aids. Mais uma.
O crítico, que não economizou retórica para o que julgou ser um momento histórico, não poderia, no entanto, ter sido mais singelo ao dar o motivo de tantas peças sobre Aids. Diz ele que, ao devastar fisicamente as artes americanas, a Aids politizou seus membros.
Ou, em outras palavras, a Aids está perto demais do teatro.
É uma explicação possível, mas não basta. Serve para entender a avalanche de peças sobre Aids, como na coletânea de Lanford Wilson, Terence McNally e até Susan Sontag ("The Way We Live Now - American Plays and the Aids Crisis", TCG, 1990), ou ainda um sucesso como o de "Marvin's Room", de Scott Mcpherson, que morreu de Aids, ano passado.
Mas "Angels" é outra história, como acredita o próprio autor, Tony Kushner. No programa da peça, ele conta como ela surgiu. "Em 87, o diretor do teatro Eureka me ofereceu uma bolsa. Eu disse que queria escrever sobre três coisas: Roy Cohn, que acabara de morrer, Aids e os mórmons. Mas não fazia idéia do que os mórmons tinham a ver com a Aids."
Ele só tinha, de fato, um título, Anjos na América. Mas começou a escrever e descobriu que havia mais. O trecho de uma entrevista ao "Los Angeles Times" esclarece o que mudou tudo. Pergunta: "Quando a peça foi pedida pelo Eureka, seria um texto curto e de fácil montagem. Como foi crescer para um épico de sete horas?"
"Eu tinha muito mais a falar do que pensava. Ela explodiu. Entre escrever o segundo e o terceiro atos de 'Millennium Approaches', eu me dei conta de que ela tinha vida própria. Antes, o que eu planejava era o que escrevia. Simplesmente não era mais o caso."
A peça que nasceu para expor Roy Cohn, advogado reacionário morto pela Aids, e os mórmons, seita cristã tão ou mais reacionária do que o advogado, explodiu pelas próprias contradições de origem. Kushner não era, afinal, o homossexual politicamente correto e ativista que ele mesmo pensava.
Ainda que não seja o personagem central da peça –cujas duas partes, "Millennium Approaches" e "Perestroika", giram em torno de Prior Walter– Roy Cohn é uma amostra do humanismo em "Angels". Um monstro de poder, que nem assim escapa da praga do fim do milênio. E que termina, não como um demônio, mas chamando Ethel Rosenberg de "mãe".
Roy Cohn, que conseguiu a pena de morte do casal Rosenberg, um crime histórico, ainda seria personagem de outra peça. "Roy Cohn/Jack Smith", do Wooster Group, trata das mentiras ocultas no verso da vida pública.
Kushner, quando explodiu com "Angels", foi além do simples conflito de vida pública e privada. A presença de um outro pólo –os mórmons– jogou a peça nos domínios da religião. O autor liberou temas e personagens, que entraram em conflitos sem ordenação.
"Em 'Angels', republicanos estão com republicanos, mórmons com mórmons, gays com gays. É tudo bem concertado, mas aí não funciona por toda sorte de pressões internas: um mórmom que está casado também é gay, um dos gays tem Aids e o outro não sabe lidar com isso. Na aparente homogeneidade há enormes conflitos."
Conflitos que não se resolvem, a não ser... "Uma das coisas que a peça diz é que a religião é incrivelmente importante e que, sem ela, nós não sabemos para onde vamos. Por outro lado, conforme as sistematizações éticas vão sendo ultrapassadas pela história, as suas leis tornam-se irrelevantes e nós nos distanciamos de nós mesmos."
Kushner chega a arriscar uma solução para o enigma da Aids, da Aids como metáfora do declínio espiritual no fim do milênio, de "Angels": "Há uma distinção na peça, que eu espero que esteja lá –entre moralismo e moralidade, e a tarefa de encontrar o que é moral através do que é moralista."
Não é pouca ambição, para um tema que parecia restrito –e que segue rejeitado por artistas como o diretor francês Patrice Chereau: "Aids é um problema e não tema para uma peça." A frase ajuda a explicar a morte do teatro francês.

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