São Paulo, domingo, 20 de março de 1994
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A euforia e o desespero

SILVIANO SANTIAGO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A euforia e o desespero, adjetivando a inadiável saída para o impasse, propiciam duas formas distintas de resposta da produção artística à história: o panfleto artístico e a obra de arte. Cada um tem a sua própria função social.
Em momento de crise aguda numa dada sociedade, a linguagem artística tem o direito de ser panfletária, simplista, irracional, grotesca, contundente, eficaz, buscando, na lógica mortífera dos argumentos que ela combate, o seu próprio modo de construção às avessas. Nada melhor contra uma campanha publicitária equivocada do que um panfleto artístico eufórico. Nada melhor contra o inferno prometido do que o paraíso conquistado. Veja-se a peça de teatro "Angels in America". Taco a taco: pessimismo e otimismo.
A arena de discussão do panfleto não é a do terreno alternativo e precário que a grande obra de arte institui pela linguagem que lhe é própria, mas é a arena da "polis" por onde ele pode e deve circular, em sinal de alerta. A obra panfletária bate forte em qualquer um que constitua o seu público, instigando-o pelo puxão de orelha companheiro e cúmplice. Ela é antes de tudo sedutora, até porque fala essencialmente da salvação pela vida.
Carlos Drummond no poema "Passagem da noite" em "A Rosa do Povo": "Chupar o gosto do dia!/ Clara manhã, obrigado,/ o essencial é viver."
Não adianta atacar esse direito ao panfleto com os legítimos valores estéticos que fazem uma obra transcender o seu tempo. O panfleto artístico sabe de antemão que é precário e de modo algum quer competir com, ou recalcar as obras feitas na mesma época e que obedecem a rigorosos padrões de exigência estética. Isso porque o panfleto artístico tem todos os direitos menos o de ser intolerante. Caso o seja, ele deixa de ser artístico para ser partidário. Da mesma forma, o crítico de textos panfletários tem todos os direitos, menos o de ser intolerante. As grandes causas não comportam uma solução artística ou sociopolítica mesquinha. O panfleto artístico é eufórico e abusivo, transbordante e delirante. Não enxergar o valor social dele em tempos de cólera ou de Aids é preservar-se da vida com o escudo da arte pela arte.
Há, no entanto, textos artísticos que optam por uma atitude de desesperadora esperança como resposta às crises da história do homem. No paradoxo, encontra-se terreno fértil para uma abordagem da crise que escapa aos padrões ditados pelo panfleto. Por isso, essas obras podem escapar às contigências do tempo em que foram escritas e serem apreciadas em outras épocas e outros contextos. Como exemplo, podemos citar o romance de Albert Camus, "A Peste" (tradução de Graciliano Ramos, José Olympio).
Desde a epígrafe, pedida de empréstimo ao inglês Daniel Defoe, autor no século 18 do "Diário do Ano da Peste", o romance francês nos informa que se pode usar um modo de aprisionamento pelo medo para descrever um outro modo. A cidade de Orã, ao ser tomada pela peste, passa a ser a imagem para descrever o período concentracionário por que passaram, durante a Segunda Grande Guerra, os europeus, em particular os judeus. A mágica ficcional de Camus está em ter conseguido dramatizar o medo em três perspectivas diferentes, alimentando os conflitos entre os personagens.
O romance é um triângulo cuja área é ocupada pelo enigma da peste. Numa das pontas, está o médico, doutor Rieux, cuja esperança é a saúde do corpo. Na outra ponta, está o jesuíta, Padre Paneloux, cuja esperança é a salvação da alma. Na terceira ponta, está o rebelde Tarrou, cuja esperança é o ressurgimento do espírito comunitário no vale-tudo que tomou conta da cidade (as brigadas sanitárias). Ciência, tecnologia e política lutam pela chave do enigma, mas nenhuma a tem, mesmo porque o enigma não comporta uma única chave. O enigma da peste tem a atualidade do homem.
Não há como escolher entre saúde ("santé") e salvação ("salut"); entre o individualismo destas respostas e o companheirismo das brigadas sanitárias. O romancista desconstrói o processo como cada um dos três discursos se afirmava como verdadeiro, a fim de imperar como explicador absoluto do enigma que circunscrevem. Albert Camus –ao colocar a morte de uma criança inocente no centro do conflito entre as forças discursivas explicadoras da peste– desarma a tese do Absoluto e arma o palco do relativo. Diante do enigma sobressai o escândalo do inocente injustamente punido. O escândalo é a pedra de toque que serve para medir o quilate dos discursos explicadores nas suas variadas perspectivas. Serve ele para o filósofo Camus atualizar o "cogito" cartesiano (Penso, logo existo): "Eu me revolto, logo nós somos."
O escândalo do inocente punido torna opressivo o enigma, desconstruindo a certeza das palavras clínicas, religiosas ou comunitárias. Perdura o enigma, e a rebeldia esperançosa dos três personagens (dos três discursos) se deixa tonalizar pela desesperança. Tudo tem um fim, mas nada acontece uma só vez. Desesperadora esperança. É preciso sonhar com uma cidade de Oran novamente feliz.

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