São Paulo, domingo, 20 de março de 1994
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Irracionalismo domina Kushner

MARIO VARGAS LLOSA
DO "EL PAÍS"

Embora não figure em primeiro plano, o advogado Roy M. Cohn foi um dos mais influentes caçadores de bruxas nos Estados Unidos durante os anos infames do senador McCarthy.
Ao mesmo tempo que defendia implacavelmente a política mais conservadora e os bons costumes, Roy M. Cohn tinha uma vida homossexual secreta –e morreu de Aids em 1986. Em "Angels in America", Tony Kushner recria a vida do poderoso advogado nova-iorquino a partir do momento em que ele descobre que contraiu a doença.
Roy M. Cohn é o personagem mais dramático da obra, com sua personalidade reptiliana, sua filosofia darwiniana e suas audácias convulsivas, mas não é a figura principal desta ambiciosa "Fantasia gay sobre temas nacionais" (subtítulo de "Angels in America"). O herói é o jovem Prior Walter, que até contrair o sinistro vírus parece ter sido um rapaz obscuro e sem história na babilônica Nova York, onde vivia com Louis Ironson, um analista de sistemas com tendência a fazer conjeturas éticas e emitir julgamentos políticos. Mas a partir do momento que a Aids começa a solapar sua frágil constituição, Prior passa a ouvir vozes do além-túmulo, tem visões genealógicas, dialoga com um anjo de belíssimas asas, visita a morte e retorna à vida com o espírito em paz e carregado de sabedoria.
É claro que isto é um resumo pouco fiel e um tanto quanto tendencioso de uma obra que é constituída de dois espetáculos –"O milênio se aproxima" e "Perestroika"–, tem uma montagem fantástica e, contrariando tudo que se poderia supor, levando em conta os assuntos sérios de que trata ostenta um humor cintilante e variado.
Mas, embora o público se divirta muito e, graças ao sábio invólucro de humor que os atenua e distancia, digere sem traumas os dolorosos e às vezes atrozes acontecimentos descritos em "Angels in America", creio que seria injustiça e escamoteamento dizer dela apenas que é uma obra divertida, uma excelente representação que mantém seus espectadores de bom humor durante o tempo de sua duração. Porque esta ficção não pretende entreter, e sim despertar os espíritos, abrir os olhos dos cegos para uma realidade que ignoram, estimular sua visão crítica e contribuir com idéias novas para a compreensão dos mais urgentes problemas da atualidade. Na tradição de Bertolt Brecht e do teatro existencialista, Tony Kushner escreveu uma obra que aspira a ser, talvez, pedagógica e engajada.
E, para mim, é isto que ela tem de mais precário e discutível. Porque não é verdade que a Aids seja o problema número um que confronta a humanidade, como tampouco o era a tuberculose no século 19, quando também era retratada como uma enfermidade incurável e a mórbida sensibilidade dos românticos a mitificou e enobreceu artisticamente, de maneira muito semelhante à que empregam para falar da Aids filmes como "Les Nuits Fauves", de Cyril Collard, ou peças de teatro como "Angels in America". Assistindo-as, pode-se pensar que os contaminados por esse vírus que condena a uma morte lenta e atroz não são vítimas e sim eleitos, seres aos quais o sofrimento físico indizível e o fato de se saberem condenados espiritualiza e santifica.
É esta a mensagem que se desprende da extraordinária transformação que se opera em Prior Walter. A Aids converteu o inócuo rapaz do início da peça num profeta e falso santo messiânico, que profere lições sobre a vida e contempla o resto dos seres humanos de uma perspectiva moral superior.
Isto é religião, não razão; é ilusionismo mágico, e não aquilo que pretende ser: desmistificação descarnada de uma realidade problemática. Nem a Aids, nem males físicos menos assassinos enriquecem o espírito ou purificam a alma; todos eles são uma tragédia para o corpo e, consequentemente, prejudiciais à vida intelectual e espiritual. Devem ser combatidos, e isso por meio da ciência e não de conjuras e exorcismos.
O chamado a uma abordagem racional e não fetichista ao problema da Aids é ainda mais urgente porque acirrados preconceitos em torno desse mal ainda reinam no mundo. Assim, o "problema da Aids" não é, racionalmente falando, o problema dos homossexuais –como parece sugerir "Angels in America"– e sim o de toda a humanidade vivente, e esse é um problema cujos estragos podem ser reduzidos com boas campanhas informativas e educativas sobre os riscos e a maneira de evitá-los, e com a dedicação dos recursos necessários que permitam à ciência encontrar os meios de preveni-lo e curá-lo. Mitificar a Aids com a aura romântica do heróico e do sagrado é proceder da mesma maneira irracional e obscurantista daqueles que a vêem como açoite dirigido por Deus contra pervertidos e viciados.
Tampouco é a estratégia mais eficaz para combater o preconceito e a discriminação de que são vítimas as minorias sexuais, mitificar o homossexualismo, dando a entender, como faz a obra de Kushner, que quem o pratica e escolhe alcança uma forma mais intensa de humanidade, uma sensibilidade mais aguçada para a compaixão, a solidariedade e a fraternidade, isto em função das sanções sociais a que se expõe e da incompreensão e hostilidade de que inevitavelmente se torna vítima. E não o é porque se trata de uma flagrante mentira, como o são todas as classificações da espécie humana que dissolvem o individual no coletivo. A verdade é que não existe "o homossexual" genérico, como tampouco existe "o heterossexual" prototípico. Existem homossexuais e heterossexuais e, em ambas as variedades, tamanha miríade de subespécies e exceções que fica invalidada de antemão qualquer intenção reducionista ou generalizadora.

Tradução de Clara Allain

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