São Paulo, domingo, 20 de março de 1994 |
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Ópera salva 'Filadélfia' do desastre De repente se compreende que Beckett vai morrer de amor LÚCIA NAGIB
"Filadélfia" só não é desprezível graças a uns poucos minutos notáveis. Para chegar a eles, é preciso deter-se sobre o equívoco central do filme: a combinação de cinema comercial com intenções realistas. Não é esta a fórmula que faz o sucesso do cinema de Hollywood, no qual as promessas de felicidade, os casais perfeitos, os milhões de dólares chovendo do céu só conseguem ser críveis e divertidos pelo caráter de conto de fadas, pela distância que mantêm do real e a inaplicabilidade de suas regras. Mas como levar a sério um filme que promete ao indivíduo satisfação no mundo da Aids? Não se trata de um pesadelo passageiro, nem de um monstro fantástico facilmente combatido por um super-herói. A Aids é a realidade, são nossos parentes e amigos agonizando e morrendo, é o pavor cotidiano de sermos, cada um de nós, a próxima vítima. Assim, as receitas pretensamente factíveis que o filme prega, ensinando a "ter Aids e ser simpático", "conhecer um aidético e sorrir", "aceitar a Aids e ser feliz" aparecem como levianas. Joe Miller (Denzel Washington), um advogado negro que "aprende" a tratar um homossexual aidético como ser humano, tenta comprovar a teoria de que os preconceitos são superáveis. Também ele, como negro, deve ter sido discriminado no passado, mas isso agora já acabou. Com sua família adorável, encontra-se perfeitamente integrado na sociedade branca. Com certeza, o destino dos soropositivos será idêntico, na harmônica sociedade do futuro. Andrew Beckett, o homossexual aidético, é outro advogado brilhante (até quando teremos que ouvir essas pérolas do preconteiro: "sou negro, ou homossexual, ou mulher –mas sou inteligente"?). Sua sagacidade se une à do colega negro, e juntos combatem os empresários "malvados" na forma dramatúrgica mais gasta do cinema americano: o tribunal. Depois de um longo tiroteio verbal, o bem se declara vencedor, o doente é ressarcido de seus prejuízos pela demissão indevida da empresa, e o espectador deve voltar contente para casa. Nada além de um conjunto de banalidades –não fosse a surpresa que ocorre no meio do filme.* A certa altura, parece que o roteirista, o diretor e mesmo os atores se cansam dos estereótipos que estão encenando e por alguns minutos resolvem falar sério. Beckett deixa Miller discursando sozinho sobre a próxima sessão do tribunal e faz tocar um disco com sua ária preferida, "La mamma morta", da ópera "Andrea Chénier", de Umberto Giordano, interpretada por Maria Callas. Trata-se do momento em que Madalena, uma aristocrata, depois de chorar a morte da mãe, resolve sacrificar a vida por seu amante Chénier, engajado na Revolução Francesa. Beckett ergue-se transfigurado, diante do olhar incrédulo do colega, e se põe a declamar, traduzindo para o inglês os versos da ópera italiana: "Foi naquela dor que a mim veio o amor!". E continua, narrando o que Madalena diz ouvir do amor: "Vive ainda! Eu sou a vida!", "Tudo em volta é sangue e lama?... Eu sou divino!...", "Farei da terra um céu...", "Ah! Eu sou o amor!" Pelo "pathos" da interpretação de Beckett, o espectador de repente compreende: ele vai morrer. E vai morrer de amor. Eis a tragédia que toda a verborragia do tribunal e as cenas inócuas entre Beckett e seu namorado (um Antonio Banderas inteiramente desperdiçado) até ali não haviam explicado. Se existe preconceito contra a Aids, é porque se trata de uma doença não somente sexual, mas do amor. E não mais condenável pela sociedade do que a realização do amor, como sempre souberam os trágicos e os compositores de ópera. Alexander Kluge comenta, por exemplo, que, na versão original da história de "Aída", os amantes conseguiam escapar da prisão e ser felizes. Mas então eram apedrejados pelo povo. O amor que se realiza não é sublime, e não é artístico. As sutilezas da cena operística de "Filadélfia" são tantas, que admira localizar-se num tal filme. A citação de uma ópera, em lugar de enfatizar a atração pelo luxo e o espetacular vulgarmente atribuída ao travesti, sugere a afinidade entre o amor impossível, típico da ópera, e o caráter "maldito" do amor homossexual. Eis, certamente, uma das razões pelas quais tantos cineastas homossexuais, desde Visconti, se deixaram fascinar pela estética da ópera, e militantes homossexuais como Pasolini e Werner Schroeter veneraram Callas como uma deusa. Tom Hanks recebe, é verdade, uma iluminação purpúrea artificial sobre o rosto, enquanto se move em êxtase pela sala, arrastando consigo o tripé que segura o soro ligado a sua veia. Mas essa luz, em vez de amaneirá-lo, o eleva a uma outra realidade, mais nobre que o mundinho dos preconceitos, do dinheiro, do carreirismo. Nela impera o círculo mítico amor-morte-arte. O cisne canta antes de morrer. Em sua agonia, descobre aquela que para Nietzsche é a origem de todas as artes: a música. É também uma canção de amor que entoa Meryl Streep, em "Ironweed", num "tour de force" semelhante ao de Hanks, e então o espectador logo sabe: a mendiga alcoólatra morrerá naquela noite. Em ambos os casos, esses último suspiro musical expressa o caráter inexoravelmente solitário da morte. A cena da ópera mostra o quanto "Filadélfia" poderia ter sido bom e como seus idealizadores cederam (ou tiveram que ceder) aos interesses comerciais. Mas sobretudo sugere que a discussão da Aids, no cinema, já pode (e deve) ultrapassar as meras questões de ordem prática e ganhar uma dimensão filosófica. * O crítico Luiz Zanin Oricchio fez observação nesse sentido Texto Anterior: Big Brother; Xícara; Ketchup; Marola; Limonada; Lanterninha Próximo Texto: Para Almodóvar, um enigma pavoroso Índice |
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