São Paulo, domingo, 20 de março de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Uma passagem à prova do tempo

Leia a apresentação da palestra

CLAUDE LEFORT

Em "Passagens", Michaux exala o sofrimento que as palavras lhe criam. A música é que o liberta desse sofrimento, bem como a pintura. De uma e de outra Michaux fala extensivamente, mas muito a seu modo, sem nunca se sobrecarregar com o peso de um comentário: apenas para dizer os caminhos da evasão ou de um retorno aquém da contradição, mesmo da ambivalência.
Evocando seu piano, escreve: "Com ele, tudo tão simples/ eu me achego, ele está pronto/ eu sofro, ele faz o canto. Eu trago a obsessão, a constrição, a opressão/ ele faz o canto". Se aflora nele uma dúvida quanto à constância desta ligação, logo acrescenta: "Eu não deveria esquecê-lo nunca. Eu asfixiava. Eu estourava entre as palavras. Eu estava paralisado diante dos muros. Agora não é mais a mesma coisa".
Lá onde ele descobre sua substância –alimento oceânico, repousante– a escrita lhe parece toda um artifício: "Um poema teria traído dez vezes um segredo e sua prosa tudo torna ignóbil". A música lhe inspira um furor contra as palavras: "Palavras, palavras que vêm explicar, comentar, fazer engolir, tornar plausível, razoável, real, palavras? Como o chacal". Tanto quanto a escrita, a leitura, portanto, lhe repugna. E quando ele a evoca, desta vez é o prazer da pintura que o incita a este desgosto: "Livros são leitura aborrecida. Nada de livre circulação, somos convidados a seguir. O caminho está traçado, único. O quadro é todo diferente: imediato, total".
Mas seria vão nos determos na oposição entre música (ou pintura) e escrita. Ocorre a Michaux denunciar na música "uma arte que buscamos, tanto por seus defeitos quanto por suas qualidades, por sua água morna quanto por seus explode-corações, pela densidade insinuante e aviltante e por tudo o que ela arrasta consigo". Ocorre-lhe também revelar do que é feita sua experiência da escrita, como ela se choca de encontro à sua malha do real, a desloca, novamente volta a se chocar, para chegar enfim ao que é "invenção agarrada pela garganta". É, ele nos diz ao termo deste trabalho, nesta "honestidade tardia" que ele encontra "uma das alegrias e um dos suplícios de escrever". Enquanto, por momentos, a música parece oferecer-lhe uma "passagem" para o puro exterior, que ele designa "o passa tempo", Michaux encontra na escrita uma passagem à prova do tempo.

Texto Anterior: Claude Lefort ataca a crítica conformista
Próximo Texto: Um encontro entre arte e pensamento
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.