São Paulo, domingo, 20 de março de 1994
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Claude Lefort ataca a crítica conformista

FERNANDA SCALZO
DE PARIS

O filósofo Claude Lefort faz no dia 12 de abril, em São Paulo, e no dia 13, no Rio, uma palestra sobre o escritor, músico e artista plástico Henri Michaux (1899- 1984), dentro do ciclo "Artepensamento", organizado por Adauto Novaes. Para Lefort, autor de "As Formas da História" (Brasiliense), entre outras obras, Michaux representa a corrente do pensamento contemporâneo que caminha na direção de uma eliminação das fronteiras entre as artes e entre estas e a filosofia.
Em seu escritório do Centro de Estudos Raymond Aron, em Paris, Lefort também falou à Folha sobre o "politicamente correto" –na sua opinião, herdeiro de uma "tradição de seitas" americana– e a crítica contemporânea, que ele considera cada vez mais vaga e preocupada com o espetacular.
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Folha - Por que o sr. escolheu Henri Michaux como tema de sua conferência no Brasil?
Claude Lefort - Escrevi há um tempo um artigo sobre Michaux e sempre fui muito atraído por ele. Adauto Novaes me sugeriu esse tema, já que essa série de encontros será sobre arte e pensamento. Para mim, Michaux é justamente um dos escritores que nos introduz de uma forma muito forte no enigma de um pensamento que se faz linguagem, que se faz pintura, que se faz música. Então é uma coisa interessante voltar a Michaux e tentar mostrar que para ele existe não só o desejo de ultrapassar a linguagem falada, desejo de romper as grades do real e do tempo, através da música, mas também que ele encontra justamente na música as oposições que ele acreditou ter banido da linguagem falada.
Além disso, o que Michaux faz perceber é que no seu uso das palavras –as palavras que são para ele sempre decepcionantes e que guardam significações que poderiam liberá-lo–, ele ganha o que chama de "passagem". Uma passagem para fora do real, do tempo. Ele imprime uma fluência, um ritmo, e encontra nas palavras o timbre de sua própria voz.
Enfim, há uma música na própria palavra. É precisamente na escritura que ele experimenta a maior tensão entre essas amarras ao espaço e ao tempo, essa limitação que é para ele dolorosa, e a possibilidade de escapar de si mesmo. E chega a alcançar nessa tensão um conhecimento, que para ele é um conhecimento místico.
Isso tudo me interessa porque há precisamente uma fronteira entre a filosofia –que se apresenta como a tentativa de dar conta pelo pensamento do ser, da história e da natureza–, a literatura –em que se confia a invenção do pensamento através da palavra–, a música, e as outras artes. Mas essas fronteiras, que são tão sensíveis àquele que tenta se pôr como filósofo, músico, pintor ou escritor, não são separações entre diferentes modos de se relacionar com o mundo. Essas fronteiras, que cada um experimenta seja na escrita ou na música, atestam sempre uma mesma relação, uma mesma tentativa de expressão. De modo que há música não somente na literatura e na pintura, mas há também no interior da própria filosofia. Há um movimento do pensamento, como há um movimento da literatura e da pintura. Pode-se mesmo dizer que há uma dança que acontece para aquele que acredita ter criado apenas um conceito, para aquele que acha que fixou numa tela apenas algumas linhas. Há uma dança que é sem dúvida constitutiva de todo modo de expressão.
Folha - Nesse sentido, Michaux pode ser visto como predecessor de um modo de expressão muito contemporâneo...
Lefort - Não sei se ele pode ser visto como um predecessor de um modo de expressão, mas o vejo sem dúvida como um contemporâneo. Porque, precisamente, ele é alguém que nos tira a ilusão da separação entre os gêneros e que nos revela o que há de artificial na oposição entre o sensível e o inteligível. Para Michaux, não há lugares circunscritos. Para começar, não há o corpo de um lado e o espírito de outro. Tudo o que ele diz a respeito de seu próprio corpo faz entrever uma gestação de nossa relação com o mundo exterior. Nesse sentido, ele marca uma ruptura na história intelectual dos últimos 50 anos.
O que é também admirável e muito moderno em Michaux é que ele levou o mais longe possível a noção do indivíduo e, de uma maneira mais geral, do singular, do acontecimento que pode ser aparentemente insignificante. Como por exemplo, a descoberta que ele faz constantemente de que há nele um homem direito e um esquerdo, que há uma maneira de se ligar às coisas pela esquerda ou pela direita. Ou que o corpo não é único, mas múltiplo. E também uma atenção à "rêverie" (devaneio), que quebra as fronteiras entre o que caracterizamos como real ou como imaginário. Ele é muito atento ao que acontece a ele, a seu corpo e a seu pensamento. Mas não é seu ego que ele quer descrever. O que permite que nos encontremos ao encontrá-lo.
Folha - Na corrente contrária, há hoje o movimento do "politicamente correto". Como o sr. vê esse movimento?
Lefort - Acho que felizmente essa noção não teve nenhuma repercussão na França. É um fenômeno americano, anglo-saxônico, que é insuportável, mas que é interessante na medida em que parece traduzir algo de muito antigo em uma certa tradição de seita nos Estados Unidos. Como se tudo precisasse passar por regras para poder existir. Há esse povo que parece tão pragmático, mas ao mesmo tempo um povo para o qual o discurso sobre aquilo que se deve fazer ou não, pensar ou não, é um discurso muito exigente. Há um discurso sobre a alimentação, o sexo, a maneira de manter o corpo. Um discurso que se encontra até no conformismo do pensamento. A força dessa idéia de que há algo que é "politicamente correto" faz parte de uma tendência a um conformismo de seita que Tocqueville já notara no século 19.
Folha - Como o "politicamente correto" pode ser determinante de um modo de expressão?
Lefort - Sem dúvida a moda está em todos os lugares, digamos uma atração por um certo tipo de expressão. Mas nos EUA há uma rigidez maior, ainda que os imperativos daquilo que é bom ou mau em pintura, por exemplo, mudem. Mas, pelo menos durante um tempo, temos a impressão de que tudo se passa dentro de um círculo, que há uma maneira de fazer que se impõe e que testemunha um conformismo extraordinário.
Folha - E as novas mídias, elas podem influir no modo de pensar a arte?
Lefort - No sentido de fazer a arte conhecida por público maior, as mídias podem ser algo positivo. Por outro lado, o triste é ver que aquilo que antigamente era a crítica literária e de arte tendem a perder suas exigências de antes. Fala-se de um livro, de uma pintura, para fazer valer seu próprio conhecimento, tentando seduzir o público por sua própria opinião –pelo menos é assim na França.
É uma crítica de opinião e há cada vez menos a tentativa de desaparecer no trabalho do outro para conhecê-lo. A crítica se torna cada vez mais vaga e preocupada com o espetacular. Mas nós estamos diante de um fenômeno que é inevitável e que se decidiu muito cedo. Desde o começo do século 19 há uma crítica de arte e literária que é importante e difundida pelos jornais. É um fenômeno que já se vê naquela época. Há cada vez mais autores que escrevem em função daquilo que eles acham que os leitores esperam. E o que eles acham que os leitores esperam vem em função da crítica, que valida o bom gosto ou, mais simplesmente, a modernidade.
O conceito do que é a vanguarda ajuda a decidir o que se vai criar, sobretudo para fazer parte da vanguarda. É um fenômeno antigo, que se desenvolveu muito com a cultura de massa, que é essa espécie de novo conformismo de um suposto anticonformismo. Mas eu acredito que ainda hoje existam artistas que trabalham segundo suas próprias exigências e não são motivados por um reconhecimento público imediato. Eu não acredito que as mídias possam algum dia suprimir ou diminuir a exigência de alguém para quem escrever é mais importante do que viver.
Folha - A informática pode interferir na criação?
Lefort - Olha, pode haver efeitos muito ambíguos sobre o desenvolvimento da informática. Mas até agora uma coisa certa é que ela engendra um fantasma bem razoável, que nos faz tremer, com medo que a informática substitua o exercício do pensamento ou da arte. Esse é um fantasma que encanta de uma certa maneira e que dá medo. Fantasma muito característico da nossa sociedade, que por um lado adora a novidade e por outro adora a idéia da catástofre. Nós somos fascinados por uma idéia de ruptura definitiva com todo o passado e pela idéia de uma crise derradeira.
Folha - Sobre quais outros temas o sr. está trabalhando?
Lefort - Eu procuro interrogar o novo estado do mundo, depois do fim do comunismo. Principalmente pensar o liberalismo selvagem, que se espalhou, e também o nacionalismo. São as novas questões que apareceram e que mostram a que ponto nós temos necessidade de pensar por nossos meios uma nova democracia. Com o fim do comunismo, o que mobiliza as pessoas é a economia de mercado ou o nacionalismo. É uma tentativa de pensar, para além dessas falsas questões, o que pode ser um caminho para a sociedade.
Folha- O filósofo Jacques Derrida escreveu recentemente um livro sobre Marx, "Espectros de Marx". Há uma retomada de Marx na França?
Lefort - Na minha opinião isso não tem interesse. Há intelectuais que procuram sempre uma vaga. Nós falávamos há pouco de conformismo e anticonformismo... Derrida, que eu saiba, nunca falou de Marx. É surpreendente, é insólito, ele começar a falar de Marx. O que há hoje em certos meios é uma nostalgia do tempo em que podíamos falar do comunismo. Mas daí a dizer que há uma volta a Marx, não dá.

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