São Paulo, domingo, 20 de março de 1994
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Francis faz relato tranquilo de 1964; A OBRA

NELSON ASCHER
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Francis faz relato tranquilo de 1964
1964. 31 de março ou 1º de abril? Revolução ou golpe? Com essas perguntas, Paulo Francis abre seu novo livro, para fechá-lo confessando que se distanciou do tema prometido. Ele de fato faz uma crônica pessoal dos acontecimentos em questão, fala de suas personagens centrais, João Goulart e os militares, ministros, políticos, intelectuais e jornalistas. O banco de dados de que se vale são suas próprias reminiscências. Embora não fosse protagonista, estava suficientemente próximo do centro para poder amarrar algumas de suas pontas desconexas.
Como se trata, porém, de Paulo Francis, ninguém que lhe tenha acompanhado a carreira esperaria um relato frio, impessoal, impassivelmente analítico, nem ele mesmo se posiciona enquanto historiador –e reclama, aliás, da omissão dos profissionais, de quem cobra muito mais trabalho. As memórias do golpe/revolução, desde o começo, vão sendo entremeadas por suas considerações favoritas –sobre arte e literatura, religião e política, a mortalidade e a natureza humana.
Uma de suas características sempre foi, não se pretendendo filósofo ou coisa semelhante, a de discorrer sobre tópicos assim sem resvalar na normatividade, nem abrir demasiadamente sua intimidade ao leitor, que é sempre mantido a uma distância civilizada. A criação dessa distância, maior que a da amizade, menor que a da estranheza, talvez seja a chave de seu estilo e depende, seguramente, de seu modo de começar, conduzir e fechar uma frase ou período, do desenvolvimento da argumentação que, não raro, envolve o interlocutor numa digressão para interrompê-lo com uma síntese epigramática. Sua insistência em chamar as opiniões de opiniões permite que seja lido mesmo por quem –excluindo-se os dogmáticos– não as compartilha.
Mas não é tanto o prazer da digressão que norteia o livro. Aferrando-se na medida do possível a um tema que poderia ser antes definido como a questão brasileira do ponto de vista de uma geração que chegou à idade adulta entre a era Vargas e o ciclo militar, Francis parece ter começado a escrever seguro de que 1964 resumia em si os principais aspectos do problema, para ir descobrindo, à sua revelia, que o evento central se encontrava em outra data. Apesar do título e do subtítulo, "Trinta Anos Esta Noite - 1964 - O que vi e vivi" poderia perfeitamente se chamar "Quarenta Anos este Ano", "1954" ou, parafraseando Rubem Fonseca, "Agosto".
Muitos retratos são traçados nas suas páginas, mas as personagens que acabam se impondo são duas: Getúlio Vargas e Carlos Lacerda. Fica também a impressão forte de que as coisas teriam se decidido de verdade com o suicídio do primeiro. O que aconteceu dez anos depois não passaria de um "post scriptum"longamente adiado. Quem considera o autor um cosmopolita desenraizado ou algo assim (esquerda e direita possuem inúmeros sinônimos para essa expressão) pode eventualmente se admirar com o quanto ele se preocupa em tentar entender este país. Francis, no entanto, não apenas ambientou toda sua ficção no Brasil como nunca deixou de buscar compreendê-lo e explicá-lo. Entre os projetos de que já falou mas não trouxe ainda a público havia uma peça sobre a Guerra dos Farrapos, de cujas minúcias, em entrevista, ele se provou conhecedor.
Além de declarações bem claras, há detalhes no texto indicando que o público desejado é sobretudo o de pessoas que, ainda jovens, eram no máximo crianças em 1964. Dois exemplos: Francis esclarece que a Guanabara é o atual estado do Rio; e se vê obrigado a dizer quem era Tito. Isto torna "Trinta Anos" sua obra mais didática e menos polêmica. É claro que ele ainda denuncia a esquerda e suas mentiras, o conformismo subdesenvolvido e suas pretensões, as simplificações maniqueístas. Não o faz, porém, para irritar os pterodáctilos impenitentes. Confirmado pela história recente, ele se abstém de chutar cachorros mortos.
Há tranquilidade na sua exposição traçada nos pontos de encontro da memória com a análise. Ambas remetem a um país que, embora seja o Brasil, surge remoto, perdido num tempo diferente, quase incompreensível. Assim, o que mais faz falta no livro é uma quantidade ainda maior de digressões. Francis foi critíco de teatro, cinéfilo e participou do meio literário e jornalístico brasileiro. Ele se concentrou no tema escolhido às custas de outros tantos retratos pessoais, considerações críticas e episódios da "petite histoire" que, atualmente, não fazem menos falta que interpretações mais amplas, históricas ou políticas.A OBRA
Trinta Anos Esta Noite - 1964 - O que vi e vivi, de Paulo Francis. Capa de Victor Burton. Companhia das Letras (r. Tupi, 522, São Paulo, CEP 01233-000, tel. 011 826-1822, fax 011 826-5523). 208 págs. Preço não definido.

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