São Paulo, domingo, 20 de março de 1994
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Quando Raymond Carver visitou o Brasil

MOACYR SCLIAR
ESPECIAL PARA A FOLHA

Há vários anos recebi um telefonema em minha casa, em Porto Alegre. Era o adido cultural do consulado americano, perguntando se eu gostaria de jantar com um escritor americano recém-chegado à cidade, Raymond Carver. Raymond Carver? Nunca tinha ouvido falar. E era um dia atrapalhado para mim. Mas de um lado tive certa curiosidade por esta misteriosa figura; de outro, o restaurante onde seria o jantar (Floresta Negra, comida alemã) era excelente, de modo que às oito horas para lá me dirigi, com minha mulher. Fui então apresentado ao escritor, que também estava acompanhado de sua mulher, a poeta Tess Gallagher. Raymond Carver era um homem ainda jovem, grande e corpulento como os americanos costumam ser, mas com uma expressão atormentada na face meio infantil. Constatei que sua perturbação tinha razão de ser. Trazido dos EUA através de um programa cultural, Carver fora levado aos mais diferentes lugares, inclusive escolas de segundo grau onde ninguém falava inglês. A ansiedade e a frustração se haviam acumulado ao longo de sua viagem pelo Brasil e ele agora estava num estado lamentável.
Falamos muito, naquela noite. Não sobre seus livros, que àquela altura eu não conhecia, mas sobre sua vida. Uma existência cheia de percalços, para dizer o mínimo. Como outros escritores americanos, principalmente do século passado, Carver era de origem humilde. Em sua casa, havia apenas um livro. O pai permitia-lhe que lesse, mas só 15 minutos por dia, ao cabo dos quais era mandado fazer "coisas mais interessantes". Ray (como era conhecido) casou cedo, trabalhou como operário, tornou-se alcoólatra, divorciou-se. Escrever (contos, poemas, ensaios) era a sua tábua de salvação, e a ela agarrava-se desesperadamente.
Mandou-me seus livros. Gostei muito dos contos, semelhantes aos de Hemingway. Um universo de gente infeliz, derrotada –o outro lado do sonho americano.
Agora Robert Altman faz, sobre os contos de Carver, um filme magistral, "Short Cuts". Com um notável elenco (Jack Lemmon, Tim Robbins, entre outros), transportou para a tela os personagens do escritor. É um vasto painel da vida americana. Há de tudo, o glorioso e o grotesco, a ternura e o ódio, o chocante e o banal. Três homens se reúnem para pescar. Chegam à beira do rio e ali encontram, submerso, o corpo de uma mulher. O que fazer? Discutem longamente, mas resolvem pescar. Um dos pescadores leva um peixe para sua esposa. Depois de comerem, ele fala sobre o macabro achado. Ela não acredita: então a refeição que acabaram de saborear foi tirada das águas que serviam de túmulo à afogada?
Sua perplexidade é a perplexidade de Raymond Carver, a perplexidade que serviu de matéria-prima a seus belos contos. O filme de Altman é uma justa homenagem, e uma boa introdução à obra de um sofrido e original escritor.


O AUTOR
Raymond Carver nasceu em 1939 (Clatskaine, Ohio, EUA), e viveu em Port Angeles (Washington), até sua morte, em 1988. Em 1983, recebeu o Mildred and Harold Strauss Living Award, e em 1985 o Prêmio Levinson da revista "Poetry". Em 1988 foi eleito para a American Academy and Institute of Arts and Letters. É autor também de "Fique Quieta Por Favor" (Rocco).

A OBRA
Shortcuts, de Raymond Carver. Introdução de Robert Altman. Tradução de Rubens Figueiredo. Rocco (r. Rodrigo Silva, 26, 5.º andar, Rio de Janeiro, CEP 2011-040, tel. 021 531-2029, fax 021 531-2027). 179 págs. Preço não definido

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