São Paulo, domingo, 20 de março de 1994
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Escritores ficam entre militância e memórias

BERNARDO CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

Assim como no corpo a Aids se manifesta de maneiras bastante características, os efeitos produzidos pela doença na literatura também são muito específicos. Há duas linhas que, no geral, vêm se impondo ao tratamento literário do tema: a militância e a autobiografia.
Pelo tipo de situações sociais, relações humanas e condições psicológicas que coloca em jogo, a Aids é um tema literário precioso, com um potencial romanesco ainda inexplorado. É raro que sua dramaticidade narrativa, a ponte direta que faz entre o sexo e a morte, seja devidamente explorada, que a tragédia dessa condição seja tratada em toda a sua complexidade.
Um filme como "Filadélfia" é resultado de uma onda de textos produzidos nos EUA nos últimos anos com motivos de conscientização. Embora tenham sido pioneiros, autores imbuídos antes de mais nada de uma índole militante, como Larry Kramer (um dos fundadores do movimento Act Up), Paul Monette e o dramaturgo Tony Kushner ("pioneiro" na Broadway com "Angels in America") são também os responsáveis pelas narrativas mais fracas e convencionais sobre a doença.
A militância é o que primeiro se perde com o tempo, é o que pode haver de mais datado em uma obra. O que faz um filme ou livro militante sobreviver não é justamente a militância, mas algo além. Tomados pela premência da doença e de suas consequências sociais, os primeiros escritores americanos a tratar da Aids confundiram romances com panfletos, literatura com corporativismo e o sentido trágico com lamentação.
Kramer, soropositivo desde o início dos anos 80, foi louvado por colocar a doença pela primeira vez em cena. Outros, como o premiado Monette ("Becoming a Man"), também soropositivo, optaram pela via autobiográfica para fazer "relatos pungentes" ou cheios de clichês como no caso do francês Cyril Collard ("Noites Felinas", livro e filme).
O sucesso extraordinário desse tipo de produção é determinado por questões extraliterárias. Há uma dose de culpa humanista do resto da sociedade na glorificação dessas obras. Embora romances e diários sobre a Aids tenham se tornado em poucos anos, devido à quantidade, quase um gênero nas prateleiras das livrarias americanas (entre os jovens autores de língua inglesa estão ainda Dale Peck, Adam Mars-Jones, Yann Martel e outros) são ainda muito raras as manifestações da literatura em torno da doença cujo valor seja exclusivamente literário.
Pelo menos dois escritores (o cubano Reinaldo Arenas e o francês Hervé Guibert) souberam fazer da via autobiográfica associada à experiência da doença um acontecimento realmente original.
Arenas (1943-1990), considerado um dos maiores escritores latino-americanos (seu romance "O Mundo Alucinante" foi traduzido no Brasil pela Francisco Alves), alcançou uma dimensão inusitada ao ligar autobiografia e militância, entrelaçando a própria experiência da Aids (o escritor se matou quando não tinha mais forças para realizar seu trabalho) com a obsessão de sua causa política contra Fidel Castro (tendo apoiado e participado da revolução cubana, acabou sendo colocado em campos de trabalho forçado por ser homossexual e conseguiu sair de Cuba para os EUA em 1980, numa das levas de refugiados do porto de Mariel).
A estranha associação de duas coisas aparentemente díspares (o sofrimento da doença e a causa anticastrista) dá à autobiografia de Arenas, "Antes que Anoiteça" (publicada na Espanha pela Tusquets), uma força que a liberta tanto da mera militância como da simples curiosidade biográfica.
O texto de "Antes que Anoiteça" revela uma liberdade absoluta em relação ao sexo, que transborda num texto sem culpa ou escrúpulos, sem as lamentações melosas de boa parte dos depoimentos norte-americanos, um relato cujos julgamentos morais se dirigem exclusivamente contra os responsáveis pela suspensão das liberdades.
A originalidade literária desse texto, resultado de um despojamento moral radicalizado, o distancia de outras "manifestações literárias" de cunho militante em relação à Aids, onde o julgamento moral está por demais preso a certos vícios da boa índole protestante americana, ou ao estilo confessional que valoriza a "coragem da expressão de si mesmo" –como Harold Brodkey narrando sua "odisséia" na "The New Yorker".
Também pelo caminho da autobiografia mas dentro de uma outra lógica inadmissível para o bom-mocismo militante, o francês Hervé Guibert (1955-1991) conseguiu criar, em seus últimos romances, um texto singular, que escapa às habituais reduções. Desde seu primeiro livro "La Mort Propagande", o escritor, à época com 22 anos, anunciava: "Meu corpo, seja sob o efeito do gozo ou da dor, está colocado num estado de teatralidade, de paroxismo, que me agradaria reproduzir, de todas as maneiras: fotografia, filme, gravação. (...) Em decorrência dessa série de expressões, o último travestimento, a última maquiagem, a morte. (...) Quero deixar que ela alce sua voz potente e cante através do meu corpo. Será minha única sócia, serei seu intérprete".
Para Guibert, a Aids encaixa-se dentro de um projeto estético onde o próprio corpo do autor se transforma em obra, em espetáculo da tragédia. Assim como Arenas a sua maneira, Guibert utiliza a Aids como um meio para revelar uma perplexidade e uma condição existencial maior, mais profunda e complexa, que transcende a simples realidade da doença. Aqui a Aids é um elemento da tragédia e não um fim. Enquanto os militantes literatos se preocupam em vencê-la com palavras, "conscientizando" o público, os verdadeiros escritores tiram dela a força para a criação de uma obra irredutível.

O QUE LER: "À L'Ami qui ne m'a pas Sauvé la Vie" (Gallimard), de Hervé Guibert; "Antes que Anochezca" (Tusquets), de Reinaldo Arenas; "Martin and John" (Farrar, Straus and Giroux), de Dale Peck; "The Waters of Thirst" (Faber and Faber), de Adam Mars-Jones

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