São Paulo, domingo, 20 de março de 1994
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Que loucura!

ANTONIO ERMÍRIO DE MORAES

Sou uma pessoa bastante chegada a cálculos. Não porque quero; mas, simplesmente, porque preciso. O meu cotidiano se desenrola tomando decisões que exigem contas as mais exatas possíveis.
Há certas contas, porém, que eu não consigo entender. Esse é o caso das despesas de internação hospitalar pagas pelo Ministério da Saúde. O principal gasto nesse campo –pasmem!– tem sido com psiquiatria. Vejam bem: num país em que ainda se morre por cólera; onde os ratos ameaçam liquidar os homens com leptospirose; e onde crianças são abatidas por doenças corriqueiras –nesse mesmo país– gasta-se mais com esquizofrenia do que com infecções intestinais.
Sim. O relatório do Ministério da Saúde diz que, para cada internação por infecção intestinal infantil, há quatro internações de alegados doentes mentais. Diz ainda que o mais importante item de despesa –consumindo 21% do total– é com psiquiatria.
O meu saudoso professor de francês, Heraldo Barbuy, dos tempos do Colégio Rio Branco, costumava dizer aos seus alunos: "Fiquem atentos. Reparem que há mais loucos aqui fora do que dentro dos hospícios."
Sempre achei que ele tinha uma ponta de razão. Mas ao saber que os hospitais conveniados com o Inamps internaram, em 1991, cerca de 1,2 milhão de doentes mentais, percebi que aquele número ultrapassou –em muito– as estimativas do velho mestre.
Para o leitor pouco familiarizado com os problemas do custeio da saúde, esta história está ficando muito tortuosa. Por isso, vou direto ao assunto. A auditoria recém-instalada pelo Ministério da Saúde para verificar a retidão das internações nos hospitais é mais do que oportuna. Fala-se muito nas cesarianas desnecessárias. Mas, acima de tudo, a referida auditoria terá de esclarecer o que acontece com o caso da psiquiatria. Quantos são os doentes? O que eles têm? Quantos dias ficam internados? Que tratamento recebem? Será que a internação é feita em seu benefício ou em proveito de quem os interna?
A elucidação dessas questões é urgente e necessária. Essa área é extremamente vulnerável a fraudes e desvios. Quando se interna um doente para fazer uma ponte de safena, ele sai do hospital com duas belas cicatrizes: uma na perna e outra no peito. E os assim chamados doentes mentais? Como provar que eles estiveram realmente internados? Têm eles as necessárias faculdades mentais para confirmar o que foi cobrado do Inamps? Por que pagar por uma diária de um doente mental o triplo do que se paga para um doente cardíaco?
Sei que estou batendo num problema velho. Muita gente até já saiu do rendoso e confortável campo da psiquiatria depois que o cerco à corrupção se fechou um pouquinho. Mas, certamente, ainda há muito a explicar sobre os 1,2 milhão de brasileiros que são internados como doentes mentais.
Daqui há pouco, o Brasil acaba provando o inverso da tese do velho Barbuy –ou seja– que há mais gente dentro dos hospícios do que fora dele. Mais do que nunca, acho que isso está errado... Especialmente nos dias atuais.

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