São Paulo, terça-feira, 22 de março de 1994
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Gatos com luvas não caçam ratos

RUI FALCÃO

Após anos de frustradas tentativas de desqualificar Lula pela via do preconceito e da calúnia, as elites dizem aceitá-lo como presidente, mas... não o PT. Diariamente repisam a idéia de que, se eleito, Lula não vai governar, porque estará controlado pelos "radicais" e/ou paralisado pela luta interna das tendências no governo.
Parodiando Bernard Shaw, há nesta crítica um certo exagero. Afinal, o que são as divisões internas do PT, quando comparadas à verdadeira guerra civil entre quercistas e não-quercistas? Ou à discórdia nas fileiras tucanas, a respeito da aliança com o PFL?
O PT nunca abafou suas divergências, nunca aderiu ao monolitismo partidário ou ao caciquismo político, e nem por isso deixou de crescer ao longo de seus 14 anos. O que não é pouco em um sistema partidário fisiológico, controlado por lideranças carismáticas, onde fidelidade e respeito aos compromissos partidários e de campanha são letra morta. E se chegamos onde chegamos, é porque o PT e Lula nunca perderam suas raízes (radicais).
Por detrás da pressão contra os "radicais" do PT, existe uma esperteza e um lugar-comum. A esperteza: de um partido frágil e dividido resultam uma campanha e um governo fracos. As elites gostariam que Lula fosse como Menem, que rompeu com o peronismo e passou a aplicar o programa neoliberal, que atacara durante a campanha. Ou como Felipe Gonzáles e Mitterrand, que moderaram o discurso, enquadraram os "radicais", amoldaram seu programa ao figurino traçado pela mídia conservadora e pelo grande capital.
O lugar-comum é o elogio à conciliação como suprema qualidade. Mas o que resultou dos pactos de elite, senão esta brutal crise moral, social, política e econômica que o Brasil enfrenta hoje? Não seria a hora de propor rupturas, transformações estruturais, reformas profundas?
Afinal, o que é ser "radical"? Será apresentar ao governo Itamar um programa de segurança alimentar, que está na origem da campanha do Betinho? Ou será defender que a inflação se combate atacando o problema na raiz, o setor financeiro e os grandes oligopólios? Serão a reforma agrária e outra política agrícola, num país onde 6,5 milhões de famílias não têm terra para morar e plantar, onde os pequenos proprietários carecem de crédito barato, assistência técnica e prazos mínimos? Ou será anunciar nossa disposição de auditar e inclusive suspender o pagamento da dívida externa? Será a paralisação do programa de privatizações, que vende a preço de banana empresas estratégicas para o desenvolvimento nacional?
O que demarca as diferenças entre os projetos de desenvolvimento é saber "quem vai pagar a conta", que setores serão penalizados e quem será beneficiado. A definição do programa de governo do PT é clara: incorporar os excluídos, democratização radical da sociedade brasileira. Um programa cujo custo recai sobre os banqueiros, latifundiários e oligopólios. E se isto é radical, também é amplo: para cada apoio que o PT perde entre os poderosos, ele ganha milhares de adesões entre os trabalhadores, os pequenos proprietários, o empresariado voltado à produção, os setores médios e, principalmente, os excluídos.
Se radical é assumir estes compromissos e executá-los uma vez no governo, então o PT é de fato radical. E não poderia ser de outra maneira: no país do apartheid social, só é amplo quem é radical. O governo Lula só tem sentido se for voltado para as maiorias.
Aqueles que pintam o PT como sectário, desconhecem nossa política de alianças, inclusive nosso esforço em atrair o PSDB para o campo popular. Isto apesar de a cúpula tucana trabalhar por uma frente anti-Lula, em aliança com setores conservadores, aplicando um plano econômico neoliberal. Mesmo assim, dialogamos com as bases e o eleitorado, bem como os diretórios tucanos que discordam desta posição, propondo alianças estaduais e em torno de nosso programa e do apoio à Lula. Mas não acalentaremos esperanças em torno de uma aliança nacional com o PSDB, que de social-democrata só tem, cada vez mais, o nome. Haja visto o neotucano Albano Franco.
Da mesma forma, o PT não vacilou em opor-se a que este Congresso em final de mandato, cheio de corruptos, realizasse às pressas uma revisão constitucional sem controle da sociedade civil e sob um regimento interno autoritário, conduzido por um relator lobista. Revisão cujo objetivo confesso é criar uma camisa-de-força institucional para um futuro governo Lula.
Optamos, sim, por medidas radicais, como a denúncia do processo, a não apresentação de emendas, a obstrução das votações. Fomos alcunhados de "contras". E o que se verifica, após cinco meses de iniciada a revisão? Que os verdadeiros "contras" são os partidos conservadores, incapazes de firmar uma maioria, desejosos de aprovar casuísmos, adeptos de métodos inconfessáveis.
Mas apesar (ou graças) a todo o radicalismo, vem se cristalizando na população, como se pode ver nas Caravanas da Cidadania, a idéia de que chegou a hora do PT, de Lula. Agora nos cabe transformar a promessa de voto em Lula, num compromisso efetivo em torno das reformas que o futuro governo democrático e popular pretende empreender.
O PT é amplo a ponto de integrar militantes e filiados que atacam sua direção e suas resoluções democráticas. Esta convivência com as divergências é indispensável para quem compreende o desafio posto à esquerda, aos socialistas, ao campo popular: encerrar mais de um século de controle das elites sobre a Presidência da República e governos do Estado, com suas maiorias parlamentares. Mas para isso é preciso saber que gatos com luvas não caçam ratos.

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