São Paulo, quarta-feira, 23 de março de 1994
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Resultados confirmam a vocação política do prêmio

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

Pode não parecer, mas o Oscar é uma premiação essencialmente política, que expressa preocupações atuais da sociedade norte-americana. Este ano, dos cinco candidatos a melhor filme, nada menos do que três remetiam diretamente à história ("A Lista de Schindler", "Vestígios do Dia" e "Em Nome do Pai") para falar de fantasmas presentes.
"A Lista de Schindler" não deu muita chance aos outros, ao reproduzir a aventura de Oskar Schindler, um membro do partido nazista que, durante a Segunda Guerra, evitou o extermínio de cerca de 1.200 judeus pelos nazistas.
Ao evocar o Holocausto, "A Lista" propõe um diálogo inicialmente óbvio com a história. Isso, no momento exato em que no mundo inteiro, mas sobretudo na Europa, o racismo e a intolerância voltam a se manifestar com força.
Embora alguns vejam no filme a sombra de Fritz Lang (com efeito, o discurso final de Schindler em sua fábrica lembra "Metrópolis", realizado em 1926 pelo cineasta de origem austríaca), "A Lista" parece mais no espírito do cinema de Frank Capra. Schindler lembra, até na gestualidade, um cidadão norte-americano. Mas sua evolução remete, antes, aos individualistas na linhagem de Capra.
Há nele um tanto da ingenuidade (no bom sentido) de Longfellow Deeds (o personagem de "O Galante Mr. Deeds", de 1936), muito da obstinação de James Stewart em "A Mulher Faz o Homem" (1939), um pouco do anarquismo de "Do Mundo Nada se Leva" (1938), muito do clima de irracionalidade que domina "Adorável Vagabundo" (1941).
Embora esses dados sejam transpostos para outra situação e passem por uma codificação específica, convém lembrar que Capra –cineasta político por excelência– pregava nesses filmes o triunfo do indivíduo contra as instituições, num quadro em que combatia a postura coletivista do "new deal", política que naquele instante o presidente Roosevelt consolidava nos EUA.
Mais do que um "humanitário", Oskar Schindler afirma-se no filme de Spielberg como um indivíduo disposto a desafiar a ordem de seu tempo com métodos puramente pessoais.
É a grande força (e talvez a limitação) da "Lista". Seu diálogo com a história acaba envolvido pelo olhar individualista. Isso tem o mérito de falar a cada espectador pessoalmente. Ao mesmo tempo, cria um efeito demonstrativo limitado: é claro em relação ao nazismo passado e à matança dos judeus, mas dialoga com dificuldade com o neonazismo contemporâneo e seus perigos.
Nesse sentido, "Vestígios do Dia" –que não levou nenhum prêmio, apesar de suas oito indicações– transita com mais facilidade entre o passado e o presente. Também é ambientado basicamente nos arredores da 2ª Guerra.
Um momento aparentemente secundário expõe suas preocupações: o encontro entre um lorde inglês simpático aos nazistas, com um francês idiota e alemães preocupados em se rearmar. James Ivory –que acertou na mosca com um belo filme– foi à Inglaterra para manifestar sua inquietação e dizer que a unificação européia é um processo perigoso. Mas o Oscar mostrou-se mais sensível ao individualismo de Spielberg.
Jim Sheridan também fala de intolerância: "Em Nome do Pai" trata do conflito Irlanda/Inglaterra, pela ótica de um jovem alienado preso por engano e condenado à prisão perpétua nos anos 70 pelas autoridades inglesas.
Existe aí um tema recorrente no cinema (a imbecilidade da polícia inglesa), que se desdobra na não aceitação tanto do terrorismo como dos métodos repressivos que incluem a tortura. É a sanidade européia que preocupa Sheridan –e o Oscar– no momento em que o fantasma do comunismo está fora de cogitação nos EUA.

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