São Paulo, quarta-feira, 23 de março de 1994
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Mostra canta réquiem para espaço urbano

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Fui ver a exposição Arte/Cidade, no antigo Matadouro Municipal (Largo Senador Raul Cardoso, 207). Nunca soube que havia um Matadouro Municipal nem um largo Senador Raul Cardoso.
Era um sábado à tarde. O lugar estava deserto. Os eventos ali realizados –palestras, espetáculos teatrais– recebem um público enorme. Mas, talvez seja melhor visitar o Matadouro assim deserto.
Essa velha instalação pública desativada recusa-se a oferecer qualquer visão de conjunto. Os galpões escuros e vazados parecem ser muitos, parecem ser poucos. O visitante não conhece a lógica industrial que organizou aquele espaço.
A sensação não é a de se perder num labirinto –palavra que pressupõe corredores, becos, ângulos e muros. A sensação é a de simplesmente não se saber onde está. Que lugar é esse?
É um espaço de pesadelo –e o fato de aquilo ter sido um antigo matadouro carrega associações macabras. Um labirinto seria coisa mais lógica, cerebral. O Matadouro é vago, vazio, como um lugar de sonho, difícil de lembrar depois, quando acordamos.
Às vezes, tenho pesadelos diferentes dos propostos aqui. Sonho com ruas cada vez mais estreitas, mais cheias de gente, até que elas acabam e, para seguir caminho, sou forçado a entrar dentro das casas das pessoas, atravessando salas, quartos, pulando varandas, tudo num ambiente de favela, de casbá, de cortiço.
O insólito, o "unHeimlich" do Matadouro está relacionado com outro tipo de vivência urbana. As obras de arte ali expostas têm a ver, direta ou indiretamente, com o tema da cidade –"Cidade sem Janelas" é o título desse projeto.
Trata-se menos da cidade enquanto aglomeração, favela, trânsito, e mais da cidade como zona morta, edifícios abandonados, ruína.
Assim é que descobrimos, tão perto das avenidas que levam ao Ibirapuera, um espaço morto, o do Matadouro. O edifício é reocupado por artistas, quase que ao modo de uma pajelança, de um milagre: expõe-se, podre mas vivo, como um cadáver ressurreto. Assistimos à ressurreição de um matadouro, ato evidentemente paradoxal. Não há urubus em volta, só críticos de arte, vanguardistas e "darkettes".
Lá há instalações, obras de arte, projeções de filmes, performances. Vários artistas foram convidados a participar do projeto: Arnaldo Antunes, Marco Giannotti, Carmela Gross, José Resende...
Em tese, não é o matadouro, mas a cidade, o tema da cidade, o que está em discussão. "Cidade sem Janelas", este o mote do trabalho coletivo, exposto com inteligência por Nelson Brissac Peixoto no catálogo da mostra.
Tento interpretar algumas das obras expostas.
Marco Giannotti pegou uma sala, cobriu-a inteiramente de tinta vermelha. Fechou as janelas que a sala tinha e, numa parede sem janelas, pintou três janelas, com tinta preta. As janelas reais ficaram fechadas; as janelas pintadas existem, mas são pretas. Nega-se a estrutura original do matadouro, mas não há, nessa negação, nenhuma utopia, nem mesmo o "trompe-l'oeil" de uma janela perfeitamente desenhada, que enganasse o espectador. A idéia é fechar o espaço, cobrindo-o (não sei se é tolo de minha parte interpretar assim) de sangue, coisa a esperar num matadouro.
Há maior carga de emoção, a meu ver, nos dois trabalhos seguintes. Eder Santos projeta três vídeos não sobre telas, mas sobre três montes de terra. Os vídeos apresentam imagens vistas da janela de um trem. O efeito é bonito. Vemos as vistas de uma janela de trem em movimento caindo sobre a terra seca. Mudança sem sair do lugar e, como em Carmela Gross, a ditadura do chão.
Já as fotografias de Antonio Saggese, em painéis suspensos no teto, mostram a vida urbana sob um signo de exéquias, de funeral. Trata-se de estátuas sendo carregadas, transportadas, como que num ritual de enterro. O matadouro é aqui interpretado como lugar de morte dupla –morte dos que já estão mortos, morte das estátuas. Senti, entretanto, um descompasso entre as fotografias em si mesmas e a maneira com que foram expostas no lugar. Não "compuseram", por assim dizer, o espaço em que transita o visitante. Coisa que Giannotti e Carmela Gross souberam fazer.
Matadouro é, de qualquer modo, o tema do vídeo de Arthur Omar. Talvez a obra mais emocionante e perturbadora da exposição. Chama-se "Inferno". Dispõe, em semicírculo, televisões que narram a morte de um boi a pauladas, com chamas de fogo aparecendo o tempo todo na tela. Mais acima, perto do teto, quatro televisões mostram imagens de nuvens no céu azul.
Estamos longe da cidade e perto do matadouro. Mas o trabalho do magarefe, repetitivo, brutal –assassinar bois–, ecoa em duas outras obras. A de José Resende, performance realizada com a ajuda de operários, levantando blocos de pedra, com a ajuda de guindaste, como se nos oferecesse à vista uma das proezas inúteis de engenharia da prefeitura. A de um filme de Jorge Furtado, mostrando gente num trabalho repetitivo ao som de um poema de João Cabral de Melo Neto.
Reservo para o final a instalação de Carlos Fajardo, a única, a meu ver, realmente "bonita". Você entra numa sala escura e encontra uma espécie de "skyline" de maquete de cidade, feita só de riscos azuis fluorescentes, algo próximo a um temário de Gerald Thomas. É uma cidade sem janelas, morta, mas riscada de luzes assimétricas, como a esperar que alguma coisa acontecesse –um terremoto, um King Kong, uma manhã.
Arnaldo Antunes soube ocupar o espaço do matadouro de maneira original, alegre, crítica. Cobriu algumas paredes com cartazes –chamados "lambe-lambe", que anunciam nos postes e tabiques de São Paulo algum show de Tim Maia ou uma peça de teatro. Não são cartazes, a rigor, são folhas de papel, com letras pretas ou vermelhas, coladas para avisar espetáculos sem mídia. Antunes usou esse meio para desarticular provérbios "quem não tem cão caça com gato", ou para juntar palavras "chamo/ferro/venha/lenha" compondo um caos de palavras: "mundo cão", "comunicação", "quem tem cão caça com cão".
Um pouco como se o caos da cidade de São Paulo estivesse, assim, destituído de intencionalidade propagandística, comercial. A proposta se harmoniza com um matadouro que já não é mais matadouro, mas simples "espaço" para intervenções, vazio de comercialidade, crítico diante dela.
Guarda-se, de tudo, a impressão de decadência urbana. Buracos, cartazes rasgados, obras de engenharia, trabalho sem sentido, morte, matadouro, lugar sem vida, mas ressuscitado.
Penso, contudo, nos meus pesadelos com favelas. Arte-Cidade, projeto de vanguarda em São Paulo, não mostra miséria nem cortiços, mas só decadência urbana. Algo que poderia ser feito em Nova York. Exposição belíssima. Funcionaria em Berlim, em Los Angeles. As favelas e os cortiços continuam nos meus pesadelos. O matadouro é um belo pesadelo. Mas não é meu.

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