São Paulo, quarta-feira, 23 de março de 1994
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Lição de abismo

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – Leio com atraso a entrevista de Antonio Callado à revista "Isto É", justo na semana em que foi eleito para a Academia Brasileira de Letras.
Tido e havido como homem cordial (Nelson Rodrigues o definiu como "único inglês da vida real"), Callado diz que acha o Brasil uma (os leitores adivinham o quê). Vindo de mim, pessimista de carteirinha, a consideração seria banal, óbvia. Mas Callado sempre acreditou no Brasil.
Até certo ponto, ele escolheu ser brasileiro: podia ter sido, sem forçar a natureza e o registro civil, um inglês da vida real. No entanto, essa escolha parece hoje um pecado de sua mocidade, uma opção equivocada de sua maturidade.
Ele acredita que "estamos formando um Brasil perigoso (...) um país que está projetando há muito a sua guerra civil (...) das boas, à moda antiga, cheia de sangue".
Guerra civil que já existe, se olharmos fundamente a realidade. Anteontem a TV mostrou cenas de barbárie entre polícia e camelôs na rua principal de Copacabana. Diariamente, tomamos conhecimento do alto poder de fogo dos bandidos em luta aberta contra a sociedade. Tudo virá a seu tempo –segundo pensa Callado: uma guerra civil "à antiga" –e a gente logo pensa na Espanha, que não é tão antiga assim.
Companheiro de Callado nas redações, na cadeia e na vida em geral, discordo em parte de seu desencanto. Não temos estrutura para entrarmos numa fria dessas. Sempre seremos menores, o máximo a que chegaremos é ao varejo dessa violência desesperada, a essa truculência cínica das elites.
O cardeal foi beijado por um dos seus sequestradores. Luiz Salles ganhou deles um crucifixo depois de longo cativeiro. Poderes da República tripudiam sobre a miséria da nação. Não temos competência para produzir grandes lances históricos. Agora, concordo em que o Brasil está realmente uma aquilo. Minha dúvida é sobre o "está". O mais certo seria "é".

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