São Paulo, quinta-feira, 24 de março de 1994
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Pasolini formula poética do nosso fut

MATINAS SUZUKI JR.

Meus amigos, meus inimigos, disse aqui outro dia que há uma safra de livros sobre futebol saindo dos fornos.
Ano de Copa, época de renascimento do interesse pelo futebol aqui no Brasil, graças à qualidade dos jogadores e dos técnicos etc.
Tempos de renovadas paixões pelo futebol. De olhar textos cheirando a estantes, de procurar velhas anotações, de rever teipes e jogos, de dar novos sentidos para os erros e acertos do passado.
Taí uma coisa que talvez seja muito difícil para o Datafolha medir, mas em ano de Copa (e de bom futebol) deve aumentar muito o percentual de devaneios – as "impossibilidades" do poeta – nas cabecinhas brasileiras.
(Se fosse possível mensurar cientificamente o quanto a força deste imaginário pesa para a formação da índole da população de algum lugar, talvez pudéssemos estabelecer uma relação que cobrasse mais responsabilidades sociais e culturais de quem dirige o futebol no Brasil).
Mas, como eu dizia acima, vivemos momentos de esperanças, de expectativas e também de memórias sentimentais – e literárias – do futebol.
O cineasta italiano Pier Paolo Pasolini, por exemplo, tem umas belas anotações que comparam o "calcio" (o futebol, em italiano), com a literatura.
O texto chama-se "Uma Linguagem de Poetas e Prosadores".
Foi escrito na época do caloroso debate acadêmico sobre a ciência dos signos, a semiótica. Pasolini usava o futebol como demonstração da poesia e a poética como demonstração do futebol.
Para este cineasta de final trágico -- é um daqueles extraordinários artistas que deixam não só a sua obra para depois, mas também a vida vivida -- o jogo é também um sistema de signos.
Pasolini dizia que existe o futebol-prosa e o futebol-poesia. Ele dava exemplos de alguns jogadores italianos da sua época (que vou tentar adaptar para melhor compreensão do leitor brasileiro).
Mauro Silva, por exemplo, seria um "prosador realista"; Palhinha, por outro lado, seria um poeta, mas um poeta, ainda assim, realista.
Já a constelação poética dos Romários e Deners seria outra: a do poeta "maudit", extravagante.
Pier Paolo Pasolini supunha ainda que existe uma "zona do agrião" nesta classificação: César Sampaio, por exemplo, que joga um futebol em prosa, mas uma prosa poética, com instantes de clara iluminação da poesia.
(Se fôssemos rigorosos na nossa adaptação, teríamos ainda que criar algumas tipologias como a do jogador-concreto, racionalista, geométrico, essencialista, e aí não há dúvidas: Ademir da Guia).
O cineasta-poeta também dizia que ele não fazia distinção de valor entre as duas formas de se jogar futebol: era apenas uma distinção técnica.
Só haveria um momento exclusivamente, puramente, castamente poético – onde a prosa ficaria de fora: o momento sublime e absoluto do gol.
"Cada gol é sempre uma invenção, é sempre uma subversão do código: cada gol é inelutabilidade, fulguração estupor, irreversibilidade. Próprio como a palavra poética", escreveu ele.
Pasolini também dizia que a classificação literária valeria para as diferentes escolas de futebol. O futebol europeu seria prosa. O futebol brasileiro, poesia.
"Se o drible e o gol são o momento individualista-poético do gol, isto quer dizer que o futebol brasileiro – ao contrário do italiano, que seria uma prosa estetizante – é um futebol de poesia", anotou.

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