São Paulo, quinta-feira, 24 de março de 1994
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Três idéias para a escola pública

CARLOS ESTEVAM MARTINS

Eunice Durham afirmou certa vez que a educação pública no Brasil é um sistema no qual "o Estado gasta muito, os professores ganham pouco, as escolas não têm aulas e os alunos aprendem quase nada". Felizmente, porém, esse impasse pode ser rompido. Se a sociedade quiser avançar, existem saídas disponíveis, capazes de trazer melhorias importantes tanto para o ensino como para os salários do magistério.
Tais inovações exigem o fim de um equívoco sobre o presente e de uma ilusão sobre o futuro. O equívoco está em imaginar que os males do ensino oficial decorrem da deterioração dos padrões tradicionais. Na realidade, o calcanhar de Aquiles do sistema não está na queda da qualidade, mas na explosão da quantidade, que impôs ao Estado a missão de correr cada vez mais, com fôlego cada vez menor, para alcançar as reivindicações sociais nesse campo –sem prejuízo das demais.
Já a ilusão sobre o futuro reside na crença de que basta a vontade política das autoridades para que São Paulo tenha condições de proporcionar ensino de alta qualidade aos filhos do povo e remuneração condigna ao magistério, além de administrar com eficiência o sistema agigantado, responsável por mais de 80% das matrículas. Essa fantasia inibe a capacidade de se avaliar adequadamente os limites da atuação do Estado na frente educacional.
O Estado-educador, onipresente, planejador, provedor e proficiente tende a se tornar exangue e, em breve, não haverá força humana capaz de reanimá-lo para uma tarefa cada vez mais superior às suas forças. A educação pública precisa melhorar, mas não se deve esperar que o Estado faça tudo, solitariamente. Cabe à sociedade escolher remédios apropriados –alguns dos quais, aí sim, o Estado poderá ministrar, ao redefinir gradualmente suas responsabilidades. Nem a administração estadual tem como tornar tão eficiente quanto é desejável o paquidérmico modelo centralizador vigente, nem é aceitável que pretenda impor à população fórmulas tecnocráticas para vencer os obstáculos. A sociedade deve ser motivada a participar dos destinos daquilo que lhe pertence –posto que público e não estatal.
Ao lado das medidas que podem e estão sendo tomadas para a melhoria do desempenho da estrutura centralizada, três novas propostas de gestão da escola pública merecem a atenção de quem quer que se interesse pelo progresso da educação em São Paulo. Todas estão ancoradas nos conceitos de descentralização e participação e cada qual representa uma estratégia específica, porém coerente com as demais. O que se sugere, em essência, é a redivisão de responsabilidades entre Estado e municípios, a parceria empresa-escola pública e a criação da escola pública autônoma.
A necessidade de uma nova divisão de trabalho entre o governo estadual e as prefeituras resulta de algumas evidências perturbadoras: embora a Constituição paulista atribua aos municípios, "prioritariamente", a responsabilidade pelo ensino fundamental, os governos municipais suprem apenas uma parcela muito reduzida da demanda. Do total de recursos alocados por lei para o ensino público em São Paulo (pré-escola, primeiro e segundo graus), 48% estão nas mãos das prefeituras e 52% nas da administração estadual. Mas o Estado atende 82% da demanda –cinco vezes mais do que todos os 625 municípios juntos. Em nenhum outro Estado brasileiro os municípios oferecem tão poucas matrículas de primeiro grau. Precisamos, portanto, descentralizar, via criação ou ampliação das redes municipais de primeiro grau.
A consciência de que a crise do ensino público não nasceu nem se resolverá exclusivamente no âmbito do Estado fundamenta o conceito de parceria com o setor privado –que já vem despertando o interesse, quando não iniciativas espontâneas, de empresários preocupados com o reerguimento da educação pública. Esta alternativa indica como o Estado, sem abrir mão de seu papel estratégico na condução do processo educacional, pode valer-se da ajuda de um setor decisivo da sociedade para modernizar sua operação. Os agentes econômicos não se substituem ao governo quanto à gestão e aos custos essenciais da educação. Mas podem ampliar a soma de recursos disponíveis –hoje vultosos para o governo, que gasta muito, porém insuficientes para professores e funcionários, que ganham menos do que merecem.
Pode-se pensar, de saída, em duas modalidades de parceria. Numa, pessoas físicas ou jurídicas congregam-se em fundações ou associações educacionais que canalizarão um programa de ajuda de longa duração a uma ou mais escolas de determinada região. Na segunda modalidade, uma ou mais empresas adotam uma escola para, entre outros objetivos, ajudar sua diretoria a implantar, junto com a Secretaria de Educação, sistemas de capacitação profissional e acompanhamento dos resultados. Cabe às escolas decidir se lhes interessa, ou não, aderir à filosofia do projeto.
A alternativa provavelmente mais fecunda e com certeza a mais avançada que hoje se propõe ao exame da sociedade é a da escola pública autônoma. É aqui, por excelência, que será possível desencadear transformações estruturais de largo alcance na administração do sistema. O objetivo não é só melhorar os níveis de remuneração, mas, acima de tudo, permitir que o corpo docente assuma ele próprio o comando da escola, tornando-se responsável por seu desempenho e beneficiário imediato dos ganhos de qualidade conseguidos.
Baseada no financiamento público e na premissa da autogestão, a escola pública autônoma será livre para tomar decisões administrativas e gerenciais –incluindo as que dizem respeito a salários e ao seu quadro de pessoal. Valorização dos professores, racionalidade no uso dos recursos, cuidado direto do patrimônio físico, participação dos usuários e controle social da operação associam-se para obter, no fim das contas, ensino de melhor qualidade com menores índices de evasão, repetência e absenteísmo.
A gestão da escola pública autônoma é entregue aos produtores da educação. Mas o Estado mantém suas responsabilidades: fiscaliza a execução de contratos, proporciona supervisão pedagógica e apura como as famílias avaliam a vida escolar. A associação administradora será necessariamente uma sociedade civil, sem fins lucrativos, integrada por uma maioria de professores e especialistas em educação e ainda por representantes dos funcionários, pais de alunos e entidades comunitárias. Será responsável pelo cumprimento da política educacional, pela qualificação técnica dos professores, pelo fornecimento de merenda escolar, equipamentos e materiais didáticos. Os pagamentos, a cargo do Estado, obedecerão a critérios objetivos, em função do número de alunos matriculados.
É imprescindível que a sociedade se envolva em um amplo debate sobre propostas como essas. Até porque nenhuma delas poderá ser implantada sem a participação e a livre adesão dos interessados.

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