São Paulo, quinta-feira, 24 de março de 1994 |
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Dança saiu dos bordéis para a Europa
MARIA JOSÉ DE QUEIROZ
Na Buenos Aires do fim de século ouviam-se, nos salões elegantes, a polca e a valsa. Excessivamente saltitantes, pouco ou nada diziam ao temperamento argentino. Nas casas de encontros, nas tavernas e cabarés dominava um ritmo de ondulação envolvente: a habanera. Coube ao bas-fonds portenho afeiçoá-la ao gosto argentino, reelaborar a coreografia e difundi-la no país. A recriação, à imagem e semelhança do povo que a adotou, demandou anos de lento aprimoramento. Mais de 20. Depois de tão longo processo de maturação, surgiu como dança. Já não era a habanera antilhana, mas uma soma de todos os recursos rítmicos apreendidos e inventados pelos frequentadores dos lupanares. Ninguém se propusera a criar o tango. As figuras projetadas, em gestos e movimentos de duração transitória, constituíram seu grande interesse. Depois surgiriam a rivalidade entre pares, bandos, bairros e casas de baile. Graças às frequentadoras dos bordéis dos subúrbios, divulgou-se a rica coreografia do tango. Foram elas e os viajantes os principais agentes da sua propagação. Pouco a pouco, e penosamente, o tango iniciaria a conquista da pequena burguesia. Foi a geração de 1890-1900 a responsável pela sua entrada nos salões "honestos". Quando do seu triunfo na Europa, já eram velhos os seus primeiros divulgadores argentinos. A admissão no meio "decente" custara-lhe muito caro. As moças de família dançavam um tango bem-comportado, do qual se suprimiram os cortes bruscos, as quebradas, as corridinhas, o atrevimento do abraço firme. Era um novo tipo de baile, com parceiro, em ritmo de tango. Apenas isso. A grande crise coincidiu com o que se pode chamar de "via purgativa" do tango. Um dos principais responsáveis por essa renovação foi Carlos Gardel, francês de nascimento e portenho por adoção. Seus textos, em linguagem típica buenairense, foram alvo da censura de puristas e moralistas. As letras dos tangos cantavam sórdidas histórias de bordel, assassínios misteriosos, perseguições e caçadas policiais, amores suburbanos, vinganças, ciladas e ódios. Ao vencer os preconceitos da classe acomodada, à qual aborrecia seu tom vulgar, curva-se o tango à ética de classe: expurgaram-no das letras obscenas, ensinaram-lhe catecismo, vestiram-no pudicamente, para que entrasse em lares honrados. A sua história refere um ininterrupto processo de afirmação social, consagrado no esforço tenaz de conquista do público decente. "La Nación", prestigiado diário argentino, chegou a abrir colunas para defender o tango. Muitos são os compositores argentinos que têm acalentado o desejo de "dignificar" o tango, levando-o a cultas incursões pelos domínios sinfônicos e camerísticos. Houve mesmo uma tentativa dodecafônica ensaiada por Atilio Stampone. Mas tal pretensão fugiu do seu caráter popular. A renovação proposta e executada por Astor Piazzola, sem descaracterizá-lo e sem desvinculá-lo da raiz popular, elevou-o a música de concerto, abrindo-lhe as portas dos grandes teatros internacionais. Preservada a sua maior prerrogativa, que é, segundo Jorge Luis Borges, a de perpetuar "uma mitologia de punhais que lentamente se anula no esquecimento", o tango alcançou a plena maturidade. Texto Anterior: Visit USA'94 mostra EUA para operadores brasileiros Próximo Texto: Gardel se tornou argentino em 85 Índice |
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