São Paulo, sábado, 26 de março de 1994
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Amanhã será dia de anistiar o Barbosa

MATINAS SUZUKI JR.
EDITOR-EXECUTIVO

Meus amigos, meus inimigos, em um disco antológico (já devidamente promovido à época dos CDs) o Cyro Monteiro dizia que o brasieiro nasce escalado para a dor-de-cotovelo.
A julgar pelas abençoadas letras da nossa música popular, não há muito como duvidar do aforismo citado pelo Formigão, como era conhecido.
Na verdade, o brasileiro nasceu mesmo escalado para a culpa –a dor-de-cotovelo é apenas uma modulação.
O descobrimento nos trouxe, nos porões das caravelas, uma culpa ibero-católica que cresceu com viço no solo novo.
A nossa culpa é forte e caprichosa.
Às vezes, ela se manifesta como uma espécie de pânico da vitória, do sucesso. Temos culpa de ganhar dinheiro, temos culpa do sucesso –mesmo que seja alheio etc.
Outras vezes, ela se manifesta por uma antecipada euforia, por uma grande animação precoce –seguida do sol negro da melancolia, como escreveu alguém.
Mas nada une mais o brasileiro do que na expiação da culpa através da escolha do culpado (que é sempre o Outro).
Temos até uma expressão de largo uso para designar este sentimento nacional, que é a figura do bode expiatório (desconheço como ela aparece em outras línguas e em outras culturas).
O futebol está cheio destes exemplos.
O Corinthians não ganhava um título há muitos anos. Em 74, vai a uma final com o Palmeiras. Perde de um a zero.
Quem foi o culpado? Rivelino, justamente o jogador que mais alegrias deu ao torcedor daquele tempo.
Pouco importa, por exemplo, que no gol de Ronaldo para o Palmeiras, quem havia falhado, no lance anterior, tinha sido o zagueiro central Brito –que perdeu a disputa da cabeçada com o Leivinha.
Julgado e condenado sumariamente pela Fiel (só este nome, já nos remete ao universo do ciúme, da dor-de-cotovelo, da traição –e portanto, da culpa) lá se foi o Reizinho ser campeão no Fluminense.
Pois bem, depois foi a vez do Toninho Cerezzo, injustamente responsabilizado pela totalidade da alma nacional em 1982.
Não importa, por exemplo, que o resto da defesa brasileira tenha falhado –e falhado feio– nos outros dois gols de Paolo Rossi. Nós precisamos de culpados pelas nossas misérias como as plantas precisam de luz.
Condene-se, pois, o Cerezzo, para podermos ficarmos de novo em paz com os nossos fracassos.
Escrevi tudo isto até aqui para pedir para a alma nacional uma clemência.
Uma indulgência, tardia, é certo, mas ainda possível. Uma anistia para pacificar não só o homem, mas também a nossa consciência.
Moacir Barbosa completa 73 anos amanhã. O "Grandes Momentos do Esporte", da TV Cultura, apresenta hoje uma bela reportagem sobre ele.
Há quase 34 anos este homem (que pouca gente sabe que é paulistano, nascido aqui na Liberdade) é culpado das nossas culpas. No ano passado, ele, mais uma vez, foi humilhado por Zagalo, na concentração da seleção brasileira.
Quem viveu o seu tempo sabe que ele foi o maior goleiro, honrando a camisa da seleção e de um grande Vasco, inúmeras vezes campeão invicto.
A ele não restava alternativa: ou fechar o canto do gol ou tentar interceptar o cruzamento. Mas a falha, como mostra Flavio Costa, foi do sistema de marcação que permitiu a Gighia, por quatro vezes, ficar cara-a-cara com Barbosa.
Amanhã, no seu aniversário, Barbosa, é dia do Brasil te perdoar pelo erro que você não cometeu. E, então, reparar um erro que, este sim, o País cometeu.

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