São Paulo, sábado, 26 de março de 1994
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Selo Impulse traz obras-primas dos anos 60

CARLOS CALADO
DA REPORTAGEM LOCAL

Um pacote do selo norte-americano Impulse, bastante influente no cenário jazzístico dos anos 60, traz de volta às lojas (agora em CD) três medalhões do gênero: o saxofonista Coleman Hawkins e os "band leaders" Charles Mingus e Gil Evans.
Radicalmente diferentes em seus estilos, os três surgem em gravações do período 1961-1963, que ilustram o turbulento contexto jazzístico daquela época. Ou melhor: sugerem como os jazzistas mais (ou menos) tradicionalistas reagiram à iconoclastia do nascente "free jazz" –o estilo que dinamitou a linguagem desse gênero, na virada para os anos 60.
Um dos músicos que mais contribuíram para as transgressões do "free" foi Charles Mingus (1922-1979). Através de seus grupos, batizados com acerto de Workshops, o baixista e compositor repensou a relação entre arranjos escritos e improvisações.
Essa concepção mais libertária de compor e arranjar está estampada no álbum "Mingus, Mingus, Mingus, Mingus, Mingus", uma das obras-primas mingusianas. Basta ouvir a expressionista "II B.S." (uma versão acelerada da clássica "Haitian Fighting Song"), para perceber como Mingus combinava ordem e caos.
Além da arrepiante "Goodbye Pork Pie Hat" (uma das mais belas baladas de todos os tempos, aqui rebatizada de "Theme for Lester Young"), o CD inclui também "I X Love" e "Celia"', dois sensuais perfis femininos, que revelam a marcante influência de Duke Ellington (1899-1974) sobre a obra de Mingus, na qual tradição e inovação sempre conviveram.
Algo semelhante se ouve no intrigante "Out of the Cool", do canadense Gil Evans (1912-1988), reconhecidamente um dos maiores arranjadores do gênero. Após suas inovadoras colaborações com Miles Davis, Evans continuava no final de 1960 suas experiências na fronteira do jazz com a música erudita contemporânea.
Arquitetada sobre um tempo fluido e repleta de texturas sonoras, a atmosférica "Where Flamingos Fly" (de Courlander, Thea & Brooks) antecipa a estranheza do arranjo da teatral "Bilbao Song" (Weill e Brecht), no qual a conhecida melodia aparece, surpreendentemente, tocada pelo contrabaixo de Ron Carter. Outra preciosidade do disco está em "Stratusphunk" (de George Russell), um blues vanguardista –o jazz de Evans nem sempre pode ser acompanhado com os pés.
No outro extremo da invenção estava Coleman Hawkins (1904-1969), naquela época já uma mera sombra do músico que transformou o saxofone em um instrumento palatável, ainda nos anos 30. Embarcando na onda da então ascendente bossa-nova, o pioneiro do sax liderou uma sessão para entrar na parada dos maiores enganos musicais de todos os tempos.
Mesmo sem nada a ver com a suavidade de um João Gilberto, o som volumoso do sax tenor de Hawkins não chega exatamente a comprometer. O problema é sua seção rítmica, que inclui o salseiro Willie Rodriguez e (acredite se puder) o conhecido pianista Tommy Flanagan tocando claves –instrumento de percussão que é para a música cubana o mesmo que o agogô é para o samba.
Ouvidas por qualquer brasileiro, as gravações de "Desafinado", "O Pato" e "Samba de Uma Nota Só", entre outras, são de morrer de rir. Com boa vontade, pode-se no máximo dizer que Hawkins foi um precursor da diluída "new bossa" dos anos 80. Na certa, ele e seus produtores ainda achavam que a capital do Brasil era Buenos Aires.

Títulos: "Mingus Mingus Mingus Mingus Mingus", de Charles Mingus; "Out of the Cool", de Gil Evans; "Desafinado", de Coleman Hawkins
Lançamentos: Impulse/BMG
Preço: CR$ 15 mil (em média, cada CD)

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