São Paulo, sábado, 26 de março de 1994
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Série prova que caipiras eram urbanos

LUÍS ANTÔNIO GIRON
DA REPORTAGEM LOCAL

Série traz caipiras urbanos
Nada mais urbano do que música caipira. A gravadora Warner-Continental acaba de colocar no mercado a coleção de 14 CDs "Som da Terra", que comprova a tese.
São gravações antigas de composições "da roça" remasterizadas digitalmente a cargo de artistas como Cornélio Pires, Tonico & Tinoco, Zico & Zeca, Zé Carreiro & Carreirinho.
No seu conjunto, a coleção prova que o gênero caipira tem pouco a ver com o atual e suburbano sertanejo. É a cidade projetando seu imaginário num campo nostálgico, já quase extinto. O som sertanejo camufla uma jequice genuína sob camadas de sintetizadores.
A coleção tem como base os catálogos das gravadoras Columbia/Continental, que funcionou entre 1929 e 1993, e Chantecler, atuante entre 1958 e 1976. O pesquisador Baggio Baccarin selecionou o repertório com base no critério da representatividade. "Estamos tentando trazer à tona o principal dessa produção musical hoje tão desconhecida", diz.
Baccarin foi diretor artístico da Chantecler e conviveu com os estegossauros do gênero. Pena não ter sido consultado para elaborar os livretos dos CDs. Neles não há uma única informação sobre data e local de gravação. Isso desorienta o consumidor porque a instrumentação e o estilo caipira não se alteram muito ao longo do século.
O desavisado pode achar que o velho Cornélio Pires ainda está na ativa, contando piadas sobre como o caipira engana o turco e o italiano nas feiras do centro de São Paulo e batendo papo com a dupla Pena Branca & Xavantinho. O livreto não informa que Pires gravou a sua série caipira ainda em 1929, enquanto o disco da dupla foi lançado sessenta anos depois.
Apesar da ausência de dados, vale possuir alguns títulos. O CD de Cornélio Pires traz doze faixas originalmente registradas em 78 rpm para a série que o folclorista bancava junto à Columbia. Pires gravou apenas "causos" que retratam as mudanças de costumes na nascente cidade industrial: o da discussão sobre a sucessão presidencial em São Paulo; o da festa do italiano Gennaro no Bexiga.
É de Pires "a moda ligeira" "Bonde Camarão", espécie de alicerce do gênero. Ela figura na coletânea de gravações do início dos anos 50 de Serrinha & Zé do Rancho, dupla da segunda geração. Com vozes estridentes e violas bem tramadas, os dois músicos dão vida à cena originária contada na moda: o caipira que toma um bonde, leva um tranco, quebra a viola e observa os tipos esquisitos da cidade. Ali está contida a própria história da música caipira, que passa a existir publicamente no momento em que é "engaiolada" no disco de cera.
Outro elemento que demonstra o traço citadino está no LP de 1958 de Raul Torres & Florêncio. Torres (1909-1970) assinou toadas clássicas como "Cavalo Zaino", "Moda da Mula Preta" e "Cabocla Teresa" (esta em parceria com João Pacífico). Os temas são rurais orotodoxos, mas os arranjos de cordas traem a urbanização.
Mas quanto mais primitiva parecer esse tipo de música, mais ela respira os ares da cidade. É o caso do CDs de Zé Carreiro & Carreirinho, Zico & Zeca e Liu & Léu.
A primeira dupla se notabilizou pela combinação entre vozes grave e aguda e pelo cururu "Canoeiro", lançado por Tonico & Tinoco em 1950. Gravou-a num LP de 1960, que comp•e o CD sem que esse fato seja mencionado.
Zico & Zeca e Liu & Léu espantam pela aparência pop anos 60 em contraste com o estilo arqui-rural. Cantam de modo mais agudo do que índios e praticam a catira como se fosse religião.
Ao ver a viola quebrada no simbólico, o caipira passa a fantasiar o sertão perdido. Pratica um acústico esquizofrênico de alta qualidade. Lamentavelmente, os sertanejos não seguiram a lição.

Título: Som da Terra
Músicos: Zé Carreiro & Carreirinho, Torres & Florêncio e outros
Lançamento: Warner-Continental
Quanto: CR$ 12 mil (o CD, em média)

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