São Paulo, sábado, 26 de março de 1994
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"Mão invisível" continua a governar o país

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Quase nem reparei, meio distraído que andei, que nos fez uma visita, não sei bem por que, a senhora Margaret Thatcher, ex-primeira ministra da Grã-Bretanha. Pelos resumos que li da visita, veio nos dizer principalmente que privatizar tudo é muito bom.
Ela surgiu na vida política depois de Lorde Keynes, que pregou o pleno emprego, e de Lorde Beveridge, que pregou a plena aposentadoria, dando ao ex-Império Britânico uma espécie de liderança moral no mundo que dominara materialmente. Segundo aqueles dois líderes de economia e da política é importante que as nações avancem e progridam graças à garra dos mais aptos, mas que isso não se faça mediante a sumária eliminação dos mais tristes.
Mas "Maggie" Thatcher não quer nem ouvir falar em tais assuntos. É uma darwinista social absoluta: viva a unha, viva o dente. E gosta de se imaginar filha e herdeira de Elizabeth 1ª (que procura refletir até no vestuário) e de Winston Churchill. E gostaria de (hoje em dia só se pode fazer isso metaforicamente) degolar ou trancar para sempre na Torre de Londres os inimigos e de ganhar guerras.
A guerra que conseguiu arranjar foi a das Ilhas Malvinas, ou Falklands. Auxiliada, em 1982, pelos militares argentinos, também necessitados de uma guerra que lhes desse credibilidade interna, a primeira-ministra que assumira o poder em 1979, conseguiu, expulsando das Malvinas os invasores argentinos, uma esmagadora vitória nas eleições gerais de 1983. E continuou no poder até 1990.
Margaret Thatcher publicou outro dia um primeiro volume de memórias, intitulado: "Margaret Thatcher: os Anos de Downing Street". Li uma crítica ao livro assinada pelo escritor Julian Barnes, que declara nunca haver lido nada que espelhasse mais a suprema vaidade de uma pessoa.
Barnes relembra a frase com que Jorge Luis Borges descreveu, para todo o sempre, a guerra das Malvinas: "Dois carecas brigando por causa de um pente".
No bolso dos pobres
Não sei se além dos seus contatos oficiais Margaret Thatcher encontrou admiradores ou tomou chá com discípulos ilustres. Entre estes estaria certamente o senador Roberto Campos, que domingo passado escreveu em "O Globo" um artigo sobre Betinho e sua campanha contra a fome e pela abertura de frentes de trabalho.
Quem não sabe quem é Betinho, quem ignora sua biografia na luta política e na busca ardente de como transformar o Brasil num país moderno e humano, pensa que o senador está escrevendo sobre algum violeiro nordestino acampado no Largo da Carioca e arrecadando dinheiro para as vítimas da seca.
Depois de louvar o fato de que Betinho, "tendo a vida insalvável, devota-se a salvar vidas alheias", o senador avisa logo que as intenções de Betinho são melhores do que os resultados que colhe. O problema dos necessitados é complicado por mil fatores que se entrelaçam "e Betinho não parece ter senão vaga percepção dessas complexas relações". Em Betinho, "a dramatização dos efeitos é superior à percepção das causas".
E afinal o senador perde de vez a paciência e fulmina o violeiro: "Que nos diz Betinho sobre desmonopolização, privatização, desregulamentação, simplificação fiscal, redução dos excessivos encargos da mão-de-obra e absorção de capitais estrangeiros geradores de empregos? Rigorosamente nada...".
O senador Roberto Campos não cita Margaret Thatcher mas cita o venerando Adam Smith, pai do "laissez-faire". Segundo o senador, Adam Smith também elogiaria o altruísmo de Betinho, mas sem deixar de lembrar que é o egoísmo "que constrói a opulência das nações".
Se alguém não está bem lembrado de Adam Smith, foi ele o economista que criou o símbolo da "mão invisível", que pôs ordem nos negócios dos homens, que são fruto do egoísmo, das paixões de cada um, da busca do lucro. Quanto menor a interferência governamental, mais a mão misteriosa põe tudo em seu devido lugar.
A grande criação do economista Roberto Campos foi, durante a consolidação do golpe militar de 1964, inventar a correção monetária, que é a tal mão de Adam Smith entrando sorrateira no bolso dos pobres do Brasil. Foi sobretudo devido ao sutil trabalho larápio dessa mão boba que Betinho resolveu pôr de lado a desmonopolização e a desregulamentação para pedir, ao som de sua viola, que pelo amor de Deus não esperemos sair de crise mediante a morte, no menor prazo possível, dos 32 milhões de tristes que não têm o que comer no dia de hoje.
US$ 100
No momento em que escrevo, está o Brasil mergulhado em grave crise, que, afastados pormenores efêmeros ligados à URV, significa, no fundo, que o país vai inovar em matéria de democracia equilibrada nos três poderes do Executivo, Legislativo e Judiciário: cada um desses poderes que nos regem reclama o direito de determinar, a cada mês, o salário que lhe cabe retirar do Tesouro.
Cada um sabe a necessidade que passa, cada um sente onde lhe aperta o sapato. O significado profundo da interdependência é esse: o homem é senhor do seu destino e portanto do seu salário, que na sua essência nada tem a ver com trabalho. Salário e trabalho são entes distintos e mesmo inamistosos. O primeiro, livre e nobre, trata como escravo o outro, plebeu e suarento.
Que o condottiere da livre escolha do salário seja ninguém menos que o presidente do Supremo Tribunal Federal é justo e compreensível. Aliás, quando fala em nome da sua corte o ministro Gallotti já me lembra Francia, quando governava o Paraguai e se intitulava "Eu, o Supremo".
Mas o que eu queria dizer é que, considerando este país tão urvizado e dolarizado, descanso um pouco os ouvidos escutando o ministro do Trabalho, Walter Barelli, que só pensa nos que são roubados pela mão invisível. Pensa no salário mínimo. No meio de todas as formulações úrvicas, surge de repente na televisão ou no jornal o ministro Barelli, que é de fala suave, nada demagógico a dizer que pelo menos US$ 100 é que o mínimo devia valer.
No papel já foi fixado neste patamar mais de uma vez, mas para entrar em vigor dois, três meses depois, quando só valia de fato a metade. O resto ficava com a mão invisível. Antes de ser ministro, ainda professor do Instituto de Economia da Universidade de Campinas, Barelli estudou os truques com que se faz do "salário", como diz o povo referindo-se ao mínimo, o bode expiatório das crises econômicas. "Por que o mínimo corresponde em 1992, a um quinto do que valia em 1959?", dizia Barelli aos alunos. "Tinha-se a idéia de que, se o salário não crescesse, a inflação caía. Mas após 30 anos dessa política a inflação continua acelerada."
Ainda bem que, como ministro, Barelli não arquivou sua perplexidade e sua comiseração. Na realidade é modestíssima a fixação do "salário" em US$ 100, mas como agora o mínimo seria para valer, ninguém no governo quer ouvir falar em mais de 64 dólares para que o trabalhador sobreviva e mantenha viva a família.
Nas reuniões de ministros e figurões vemos Barelli, quando defende o salário mínimo de US$ 100, olhado com desconfiança pelos demais. É um estranho no ninho, um extravagante, talvez meio tocado da bola. Pensa no salário dos outros e não no dele próprio.

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