São Paulo, sábado, 26 de março de 1994
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Espanto na lagoa

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – Foi lá em baixo, na pista que beira a Lagoa e serve de passeio ou exercício para gente que vem de longe, preferindo andar aqui do que na orla das praias. E além da gente que vinda de longe, há os cachorros dos moradores daqui mesmo, conheço-os quase todos, sei o nome, de alguns a genealogia, o caráter (ou a falta de caráter) –eis que os cães até nisso são melhores do que o homem, cão sem caráter consegue ser melhor do que o equivalente.
Aconteceu nessa semana. Um fila –produto nacional e de violência ainda incontrolável– atacou um cocker, uma fofura estimada por todos e amada pelos donos. Diziam que Tito, o imperador de Roma, era a delícia do gênero humano. O cocker era a delícia da raça canina. Indefeso pelo tamanho e pela doçura, acabou morrendo como morrem os cães: o último olhar procurando o dono (no caso, a dona).
O que há de errado com os filas? Em geral, os cães são reflexo dos donos. A minoria é treinada para guarda e para justificar aquele exemplo do acusativo em latim: "cave canem". Mas a maioria é cão de companhia, não precisa ser treinada para isso. O dono pode ser matricida, violador de túmulos, profanador dos Vasos Sagrados. Para o seu cão será sempre um Francisco de Assis, seráfico, fazedor do grande milagre do amor.
E os filas? Não entendo de genética humana nem canina. Sei que a raça é produção nacional como o samba, a prontidão e outras bossas. Foi projetado para a violência. Está sintonizado com os tempos.
Olho minhas setters, Mila com seus suspiros quando me vê partir e sua alegria quando me vê chegar. A filha dela, Titi, troca o reino dos céus dos cachorros pela graça de poder dormir comigo na rede, nas tardes do fim-de-semana. Elas jamais entenderiam que um cão atacou outro por imperativo de um experimentador do ódio. Daí o meu espanto: como podem os cães aceitarem os homens?

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