São Paulo, sábado, 26 de março de 1994
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O desastre da ditadura

DARCY RIBEIRO

O Brasil atual é fruto e produto da ditadura militar, que armou-se de todos os poderes para conformar a realidade brasileira, segundo diretrizes opostas às até então vigentes.
Para tanto, começou derrogando a Constituição, avassalando o Poder Legislativo e o Judiciário, anulando os direitos civis e as conquistas trabalhistas e submetendo a imprensa à censura. Perseguiu centenas de milhares de brasileiros presos, demitidos, cassados, exilados, torturados e assassinados. Submeteu toda a cidadania ao terrorismo de Estado, condenando a juventude à luta armada como única forma possível de contestação política.
No plano econômico, as diretrizes do privatismo e da irresponsabilidade social resultaram no enriquecimento mais escandaloso dos ricos e no empobrecimento mais perverso dos pobres. Enquanto 20% dos brasileiros mais pobres viu comprimida a sua participação na renda nacional, que passou de 3,5% para 3,2%, de 1960 a 1980, a parcela dos 10% mais ricos elevou sua participação de 39,7% para 48,1%.
O desemprego tornou a massa trabalhadora descartável. A miséria resultante desencadeou a fome, a violência e o abandono de milhões de crianças.
A inflação galopante destruiu a moeda, submetendo nossa economia a uma dolarização desastrosa que acaba de ser oficializada. A invenção perversa da correção monetária retirou a parcela maior da poupança nacional das aplicações produtivas para a especulação, a ponto de inverter nossa tendência secular de crescimento do PIB.
O endividamento externo, que era de US$ 3 bilhões em 1964, passa para US$ 150 bilhões hoje, onerado pelos juros extorsivos, avassalando a economia brasileira, tornando-a insolvente dentro do sistema de intercâmbio internacional.
O empobrecimento do Estado, resultante da privatização, deteriorou o governo, que se tornou incapaz até mesmo de manter nossos precários serviços médicos e educacionais, bem como a Previdência Social e os programas assistenciais. A degradação dos salários reduziu à metade o salário mínimo e na mesma proporção o salário do funcionalismo.
No plano da cultura, vimos decair a criatividade brasileira. Na educação, o ensino primário piorou tanto que nossas escolas produzem mais analfabetos que alfabetizados. O ensino de nível médio, reduzido a três anos, deteriorou a formação de mão-de-obra e a preparação para os cursos superiores. Nestes, cresceu o ensino particular pago e ruim.
As usinas nucleares foram um fiasco e são um perigo. A Ferrovia do Aço demonstrou-se onerosa e inviável. Mais onerosa ainda foi a Transamazônica. Itaipu substituiu um projeto das mesmas dimensões e metade do preço, a ser construído totalmente em território brasileiro, sem necessidade de apagar Sete Quedas. Organizada como empresa binacional, metade dela foi entregue ao Paraguai.
A ditadura só caiu quando os oficiais das três Armas, sentindo a repulsa ao governo que mantinham, se envergonharam de usar seus uniformes nas ruas.
O valor mais alto que perdemos debaixo da ditadura foi o sentimento de que o Brasil é um país especial, com destino próprio e singular, a ser alcançado por nosso esforço. Generalizou a corrupção até nas cúpulas dos órgãos supremos do poder. Temo, mesmo, que ela tenha quebrado na juventude de classe média o nervo ético e o sentimento cívico, levando enorme parcela dela ao desbunde e à apatia.
Uma geração de estadistas deixou de ser formada, abrindo espaço para os negocistas. Tamanhos foram os danos da ditadura, que só nos resta a esperança de uma reversão radical, que devolva aos brasileiros a ousadia de tudo repensar para reinventar o país que queremos.

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