São Paulo, domingo, 27 de março de 1994 |
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Farsa precipitou o movimento militar
JANIO DE FREITAS
Nas mesmas proporções, o "dispositivo militar" inspirava confiança ao janguismo e temor a seus adversários. Os militares mobilizados pelo "perigo de comunização" seguiam, mais do que a qualquer outra, a orientação do general Castello Branco, chefe do Estado-Maior do Exército. Contrário a qualquer iniciativa golpista, que considerava como o pretexto esperado pelo "dispositivo militar" do janguismo para pôr-se em ação contra os oposicionistas, o general pregava a tática inversa: as possibilidades de êxito do antijanguismo estavam em agir como resistência militar, quando o governo passasse do estímulo à agitação para o primeiro ato transgressor das normas então vigentes. Inspirador e coordenador da guerra psicológica contra as reformas econômicas e pela derrubada de Jango, mobilizando o empresariado e usando os meios de comunicação, o general Golbery, já reformado, tinha o mesmo ponto de vista tático de Castello Branco. O lacerdismo militar era mais afoito, mas o fracasso de suas aventuras golpistas contra Juscelino o desacreditava e, sobretudo, o temor suscitado pelo "dispositivo militar" o refreava e subordinava à orientação mais cautelosa de Castello. Assim, a conspiração fervilhava, mas as incompatibilidades políticas no seu interior (Castello e Golbery, por exemplo, repeliam o lacerdismo) não impediam a observância monolítica à tática de não provocar o perigoso "dispositivo militar", esperando para reagir. Repentinamente, um dos ramais da conspiração rompeu com a tática e em 5 dias, a partir da semi-anistia aos marinheiros rebelados no Sindicato dos Metalúrgicos do Rio, em 27 de março, ultimou e desfechou um golpe independente. Neste intervalo, tentara atrair os líderes de outras correntes, não incluído nisso o lacerdismo, mas seu êxito limitou-se ao embarque de um punhado de oficiais para Minas, onde eclodiria o levante para o golpe. A quase totalidade dos demais foi surpreendida pelo 31 de março, restando-lhe aderir -juntamente com muitos dos considerados confiáveis pelo "dispositivo militar". O que acontecera para motivar a repentina cisão tática, afinal vitoriosa? Na noite de 30 de março todo o país estava ligado no discurso que Jango faria para um auditório superlotado de cabos e sargentos, no Automóvel Clube do Rio. Dois dos seus amigos pessoais, Samuel Wainer e João Etcheverry, foram ao encontro dele no Palácio Laranjeiras, para repassar o discurso preparado e acompanhá-lo ao clube. Encontraram um Jango inesperado. Abatido, muito nervoso, relutava em ir ao encontro de um pessoal que andava exaltadíssimo e vinha tomando atitudes de audácia crescente. Jango temia sofrer provocações, e estava convencido de que aconteceriam. Fracassados os argumentos em contrário, Samuel Wainer deu a Jango um produto estimulante, uma das chamadas bolinhas, de que era consumidor habitual na sua vida agitada. O remédio funcionou. Foi um Jango mais do que animado que saiu do Laranjeiras para o clube. O Jango que se viu e ouviu, naquela noite, era desconhecido. De ar sempre plácido, fala pausada, gestos comedidos e todo o aspecto de forte timidez, este era o Jango conhecido. O que se mostrou na noite de 30 de março de 64 era um homem exaltado, de fisionomia alterada pela ira –os gestos endurecidos, as veias das têmporas intumescidas. O discurso escrito era abandonado para a inclusão de frases cada vez mais fortes. Resultou em discurso de incitação. Foi ovacionado pelos cabos e sargentos já em francas e sucessivas atitudes de demolição da hierarquia militar. Mas eles não sabiam que Jango não estava em seu estado normal. O efeito animador da primeira bolinha levou à ingestão de mais uma, no carro, já a caminho do clube. E Jango, dotado de boa intimidade com os efeitos do whisky, não tinha o menor preparo para a mistura de álcool e bolinha, aliás, duas (quando, bem depois do golpe, Etcheverry contou este episódio a José e Maria Yedda Linhares e a mim, disse haver desaconselhado a primeira bolinha e protestado contra a segunda e, tendo-o conhecido bem, acredito que tenha dito a verdade). Na noite do dia 30, estava generalizada a convicção de que o discurso indicara faltar pouco para alguma iniciativa extremada de Jango. Duas personagens puseram-se imediatamente de acordo na idéia de antecipar-se, precipitando o levante, já no dia seguinte, 31: Magalhães Pinto, governador de Minas e aspirante à sucessão de Jango, e o marechal Odylio Denys, que nove anos antes conduzira as derrubadas dos presidentes Café Filho e Carlos Luz. A decisão consolidou-se com a adesão do ramal-motriz da conspiração: o general Vernon Walthers, cabeça da CIA no Brasil, garantia a intervenção militar americana se o êxito da rebelião fosse ameaçado pelo "dispositivo militar". Iniciado o levante em Minas, San Thiago Dantas foi a Jango comunicar-lhe que uma frota americana estava a caminho da costa do Espírito Santo, para o possível apoio ao golpe. O aviso apenas apressou a fuga de Jango do Rio: o "dispositivo militar" não apareceria e Jango não quis acionar o que lhe restava. Nem mesmo quando a tropa gaúcha, ao menos esta, propôs-se a resistir. Texto Anterior: "Vocês ainda vão sentir saudade de mim" Próximo Texto: Insubordinação na tropa foi estopim Índice |
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