São Paulo, domingo, 27 de março de 1994
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Estado promovia uma guerra psicológica contra adversários

FERNANDO MOLICA
DA SUCURSAL DO RIO

Documentos obtidos pela Folha comprovam que, entre os anos 60 e 80, o Estado brasileiro promoveu a censura à correspondência, a espionagem de ativistas políticos no exterior e o controle de partidos, universidades, colégios e redações de jornais. Um dos documentos revela a orientação do comando do então 1º Exército (sediado no Rio de Janeiro), o qual recomendava que, nos interrogatórios, se buscasse "sensibilizar os presos nos seus ângulos vulneráveis (família, emprego etc.)".
O material integra o Acervo Dops (Delegacia de Ordem Política e Social) do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, que fica em Niterói (a 13 km do Rio). Lá estão documentos e fotos que abrangem mais de 50 anos (da década de 30 à de 80) da história da repressão política no Brasil. A integração do aparato de segurança permitiu a presença no acervo de documentos produzidos em diversos órgãos federais e estaduais.
O documento do 1º Exército que trata de interrogatórios é o Relatório Especial de Informações número 01/76 de 23 de março de 1976. O relatório estabelece as normas da Operação Grande Rio, que visava implementar normas de combate às organizações de esquerda. Ao mesmo tempo em que revela uma preocupação com o respeito aos "preceitos legais estabelecidos pela Revolução", o documento estimula ações como o levantamento de "pontos vulneráveis" das pessoas de destaque no meio artístico, político, jornalístico e religioso.
Entre os objetivos da Operação Grande Rio estava a prisão de "subversivos", "cadastrando-os nos órgãos de segurança pública para comprometer suas atividades profissionais atuais ou futuras". O documento defende também uma "guerra psicológica visando intimidação dos líderes subversivos mais atuantes", que incluía uso de telegramas e telefonemas.
A censura à correspondência com autorização oficial fica clara no caso de um argentino morador do Rio, considerado suspeito, em novembro de 1974, de "manter contatos com subversivos em Buenos Aires". A suspeita foi encaminhada pelo 1º Exército ao DGIE (Departamento Geral de Investigações Especiais). Em abril de 1975, um agente do DGIE sugeriu o encaminhamento de ofício aos Correios e Telégrafos "objetivando a censura imediata" da correspondência enviada ao argentino. No dia 2 de julho, o DGIE informava à 2ª Seção (Informações) do 1º Exército que a análise revelara que as suspeitas eram infundadas.
A rede de informações incluía a presença de espiões em território estrangeiro. Um deles, o "agente AOC", mandou ainda em 64 relatório de 15 páginas que tratava da situação política no Uruguai e da movimentação na casa do presidente deposto João Goulart. "Estuda-se no momento um manifesto a ser assinado por Jango e JK (o ex-presidente Juscelino Kubitschek) não falando em nomes, mas enaltecendo uma aliança do PTB-PSD na Guanabara", informou o agente.
Em 1975, o fim da pena do bancário Jorge Medeiros Valle, o "Bom Burguês", assustou militares que procuravam formas de prorrogar sua permanência atrás das grades. Valle ficara célebre ao desviar dinheiro de aplicações financeiras para os cofres da guerrilha. No dia 27 de junho, a duas semanas da data prevista para a soltura de Valle, o 1º Distrito Naval distribuiu para oito órgãos de segurança um pedido de informações sobre o envolvimento de Valle em outros IPM (Inquérito Policial Militar) ou processos "que impeçam sua soltura".
Documentos mostram que o acompanhamento das atividades nas universidades e colégios era estimulado pelo ASI (Assessoria de Segurança de Informação) do Ministério da Educação e Cultura, que enviou diversos pedidos de informações para a polícia. Universidades oficiais colaboravam, fornecendo fichas de estudantes acusados de agitação.
A preocupação com a infiltração dos comunistas nas instituições de ensino produziu uma ironia histórica: no dia 15 de abril de 1975 o 1º Exército encaminhou o pedido de busca 298/75-G, em que pedia dados sobre a conduta ideológica do "esquerdista notório" Eduardo Portella. Quatro anos depois, Portella seria nomeado ministro da Educação e Cultura no governo do general João Baptista Figueiredo.
Um informe feito em 1975, também pelo 1º Exército, gerou diversas investigações sobre professores e diretores do Colégio Normal Nossa Senhora de Misericórdia, na Tijuca, Rio. O motivo: a adoção pela escola do livro "Pedagogia do Oprimido", de Paulo Freire. Professores de outro colégio católico do Rio, o Santo Inácio, foram acusados pelo Cenimar (Centro de Informações da Marinha), em novembro de 78, de formar uma "base subversiva" em um curso noturno.
Órgãos como o Cenimar controlavam a movimentação dos partidos comunistas e de seus militantes. O nível de informações era tamanho que a falta de providências contra comunistas chegava a irritar o Cenimar. Ainda em 65, ao encaminhar ao SNI (Serviço Nacional de Informações) cópias de levantamentos de prontuários, os agentes do Cenimar incluíram uma observação: "Verifica-se haver elementos do PCB dirigindo federações e sindicatos como se nada houvesse contra eles. Por diversas vezes tem este Centro feito levantamentos de prontuários como estes e no entanto, até agora, segundo nos consta, só serviram como elemento de saturação dos trabalhos deste Centro."

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