São Paulo, domingo, 27 de março de 1994
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Lei, moeda e dívida pública brasileiras

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES
ESPECIAL PARA A FOLHA

A crise dos três poderes, da última semana, é exemplar para entender o tamanho da crise brasileira. O Supremo Tribunal Federal é o juiz, em última instância, o guardião da lei, que deve ser obedecido pelos demais poderes da República. Por que isto não ocorreu? Aparentemente, porque outros dois poderes se levantaram.
A grande imprensa (o quarto poder), que forma a "opinião pública" da classe média, estimulou a sua indignação contra decisões do Supremo e do Congresso. Por outro lado, os militares, um poder supostamente subordinado, sentiram-se indignados com a ruptura, uma vez mais, do princípio da isonomia. Será só isto? As respostas não são tão fáceis.
O Supremo interpreta, em última instância, a Constituição e as leis, mesmo que elas digam respeito a contratos privados. Como poderá fazê-lo, porém, respeitando ele próprio a lei, quando existem legalmente duas moedas? Como julgar em consciência contratos escritos ou implícitos que dependem de uma moeda como meio de pagamento e de outra como unidade de conta? A primeira varia tanto, dia-a-dia, que uma semana é suficiente para produzir um aumento de mais de 10% nos vencimentos antecipados dos congressistas e dos magistrados.
Cabe perguntar: Se o Supremo não está de acordo com a suposta falta de regra das duas moedas, que existem de fato desde a emissão da última medida provisória, por que não a proclamou imediatamente inconstitucional e se serviu dela privadamente? O Supremo Tribunal é por acaso uma Justiça privada ou é o baluarte da Justiça Pública? Como se vê, trata-se de questões altamente perturbadoras.
Sem uma única moeda pública não há contrato legal que se sustente. Num artigo que escrevi para a Folha em 01/08/93, intitulado "A vida e a morte da moeda brasileira", avisei que nas sucessivas mortes da moeda os sinos acabariam dobrando para todos.
Mas parece que a elite de poder deste país é surda e não ouve o dobrar dos sinos. Não recua dos seus privilégios e contribui para rachar o Estado de Direito de forma insensata, optando sempre pelo direito privado, mesmo quando disfarçado de direito público.
Mas, como manter o direito universal, se o valor dos contratos está expresso em dezenas de moedas, tantas quantos os dias do mês e os indexadores escolhidos? Como pode haver lei que impeça a "ruptura dos contratos", se os contratos não têm sustentação monetária?
Esta parece ser uma pergunta que não ocorreu aos juízes, nem aos agentes financeiros indignados com o artigo 36 da medida provisória, nem, com maior razão, às lideranças sindicais que têm menos poder e perderão compulsoriamente ao continuar recebendo em cruzeiros reais.
Existem sérias dúvidas de que possamos ter uma nova moeda pública estável num futuro imediato, por exemplo, dentro de dois meses. O cruzeiro real, criado em agosto de 1993, foi substituído pela URV, uma moeda indexada legal, que corre atrás da inflação passada, com mais de 15 dias de defasagem e tem pela frente as expectativas do mercado financeiro que, este sim, corrige dia-a-dia os seus contratos. Esta situação provoca altíssimo grau de incerteza e uma aceleração inflacionária que continua levando às nuvens as taxas de juros.
Os reflexos sobre a dívida pública e sobre o Orçamento desta corrida desenfreada de preços e juros nominais são desastrosos e o déficit fiscal potencial reaparece muito antes de terminado o plano.
Assim, a nação continua sem Orçamento, que deverá ser refeito, não se sabe em que moeda, se em cruzeiros reais, em URV ou em real: o resultado é que todos os segmentos de poder protestam sem razão, porque, a rigor, não existindo uma única moeda e uma lei orçamentária aprovada pelo Congresso, não há qualquer interpretação legal que não esteja sujeita a dúvidas "razoáveis".
Para não romper como os contratos privados dos poderosos, o governo manteve em funcionamento a ciranda financeira, com o que não existem mais contratos públicos viáveis, nem Orçamento "equilibrado" possível. Algum economista dirá: não tem problema, perdemos a âncora fiscal e a salarial (depois da URV), mas agora podemos vir a ter uma âncora cambial, com o real lastreado nas reservas e ancorado no dólar.
Se a imprensa tivesse registrado o debate com parte da equipe econômica no Senado, realizado em 14/03/94, a pedido do senador Eduardo Suplicy, com a participação dos professores Mário Henrique Simonsen, Paulo Nogueira Batista Jr. e a minha, uma parcela da opinião pública poderia estar informada de que os três estávamos de acordo sobre vários fatos.
Um deles é o atraso cambial já existente, por causa da mecânica dos indexadores, o que torna a paridade cambial fixa da nova moeda um evento altamente improvável e indesejável. Agregue-se ainda a precariedade de nossas reservas confiáveis, aquelas que descontam o brutal endividamento externo de curto prazo, armadilha na qual nos metemos nos últimos três anos e destrói a confiança na âncora cambial, comprometendo o ajuste fiscal em pouco tempo.
A mudança de nossa moeda, nestas condições, não leva a parte alguma, se não, na melhor das hipóteses, a uma nova reindexação em real.
Finalmente, alguém poderá achar que isto não tem importância, já que merecemos pelo menos a confiança dos banqueiros, porque vamos assinar um suposto Plano Brady que nos exigirá, diga-se de passagem, pelo menos a esterilização de mais US$ 3 bilhões de reservas verdadeiras, as quais poderão ficar reduzidas a menos de US$ 10 bilhões.
Quem acha que o nosso problema com a "comunidade financeira internacional" está resolvido, ou que assinamos um verdadeiro Plano Brady, apenas um pouco mais caro, está mal informado. Não deve ter lido sequer o artigo de Celso Pinto, na "Gazeta Mercantil" do dia 18 do corrente mês e deixou-se levar pelas manchetes dos principais jornais deste país (incluindo a própria "Gazeta Mercantil" e esta Folha).
Os mal informados ficaram mais convencidos pelo anúncio do ministro da Fazenda na "TV Globo", de que "o Brasil, depois de 11 anos de tormentas, está finalmente livre do problema da dívida pública externa".
Infelizmente, não está, ministro. Talvez tenham lhe informado mal sobre as condições do nosso "Brady-Brasileiro" ou, diga-se de passagem, sobre os efeitos dos poucos Planos Brady de sucesso, com a reconhecida exceção da Costa Rica, em termos de transferência de recursos públicos para o exterior, pelo menos nos primeiros anos.
Ainda voltarei com mais vagar ao tema da dívida externa, hoje pouco estudado, mesmo pelos mais devotados economistas de oposição, seja porque ninguém aguenta mais falar do assunto, seja porque confiamos demais na mudança favorável das condições internacionais de baixos juros e alta liquidez.
Mas o ministro da Fazenda não é economista de oposição e sim o responsável por um plano de estabilização que cada vez mais está impedido de seguir para Buenos Aires, porque este trem já passou. O novo trem, o FHC-2, periga descarrilar não apenas na Central do Brasil, mas também em Brasília e na mudança de clima dos mercados financeiros internos e internacionais.
Na capital do Império já descarrilou, pelo menos temporariamente, e ficará no desvio até que a nova moeda prove a sua "eficiência" para o FMI e o Congresso Nacional aprove as "reformas" que o Banco Mundial deseja.
Moeda e dívida pública são coisas sérias demais para serem tratadas apenas por técnicos e impedem que qualquer lei funcione pela simples aprovação de uma medida provisória ou pelas decisões contraditórias e privatistas dos poderes do Estado.
Ou o Estado segue sob um comando reunificado e eficaz e o Banco Central pára de quebrar o Tesouro, ou os contratos, a moeda, a dívida e, portanto, as leis vão ficar muito mal paradas.
Há cerca de cem anos, Ruy Barbosa comandou um "encilhamento" para salvar a República. Há 40 anos, Vargas suicidou-se, adiando um golpe que acabou ocorrendo dez anos depois. Entre as heranças malditas do regime militar, temos a "ciranda financeira", com a sua moeda indexada.
Oxalá a força das circunstâncias ou a falta de consciência e de vontade política das elites do poder, algumas das quais também herdamos do regime autoritário, não nos faça enfrentar mais uma década sem moeda e sem lei.

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