São Paulo, domingo, 27 de março de 1994
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Noriega fala a Oliver Stone

OLIVER STONE

Especial para o "The Nation"
Centro Correcional Metropolitano, Miami (EUA). Manhã do dia 22 de novembro de 1993. Estou numa sala com o general Manuel Noriega, que hoje é o prisioneiro de guerra nº 38699-079, sua filha Sandra e um assessor jurídico que funciona também como intérprete. O carcereiro espera na outra ponta da mesa. A entrevista dura três horas. O que transcrevo a seguir é um resumo de nossa conversa.
*
Manuel Noriega – De 1970 a 1988, além dos seis anos anteriores, quando eu era estudante, eu fui amigo dos Estados Unidos. Amigo em tudo que fosse relativo a inteligência e assistência militar. Eu lutei como patriota panamenho, e quando me opus ao ponto de vista dos EUA em relação ao Canal do Panamá, quando comecei a dizer "Não, não" à violação do Tratado do Canal, de repente virei demônio –depois de 24 anos de amizade. Eles precisavam criar um demônio para poderem livrar-se do demônio. Foi isso que aconteceu.
Stone – Minha impressão é que muitas de suas atuais dificuldades começaram quando os Estados Unidos, Reagan, Bush, Elliott Abrams, Oliver North –quando esse pessoal pressionou o sr. a tomar parte na guerra contra os sandinistas.
Noriega - Bem, quando os contras fracassaram em seu programa de sabotagem contra o governo sandinista, os EUA acharam que o Panamá poderia lhes servir de apoio. Primeiro eles solicitaram o uso de vários lugares no Panamá para treinamento e aprovisionamento. Eu disse não.
Stone – Isso foi na reunião com o assessor de segurança nacional Poindexter, em 1985?
Noriega - Não, foi antes. Poindexter veio depois. Ele disse que estava vindo em nome de Reagan e Shultz. Nessa reunião ele não disse "por favor". Ele deu ordens. Ele disse: "O Panamá precisa ir contra a Nicarágua. O Panamá tem que sair do grupo de Contadora". Tivemos uma discussão acalorada e então Poindexter foi embora, e fez uma ameaça: dali até dezembro de 1985, se o presidente (Nicolás Ardito) Barletta (derrubado da presidência do Panamá) não estiver de volta em seu cargo antigo e se você não ajudar nesta guerra, você vai sofrer as consequências.
Stone – José Blandon me descreveu uma reunião na qual o sr. estava com Oliver North, e ele dizia que havia 20 mil contras e ou o sr. ou José disseram: "Coronel North, eles não são um exército, são uma piada". North achou que eles poderiam atacar e vencer desde a fronte sul (Costa Rica), mas eles não tinham uma liderança, então solicitou ao sr. que treinasse os líderes...
Noriega - Houve três etapas. A primeira foi quando pediram bases para treinamento. Depois, quando Poindexter veio, e mais tarde quando Oliver North me convidou para reunir-me com ele em Londres, no hotel Victoria (em setembro de 1986). North estava vindo de Israel. Ele estava com Secord e outro general. Os problemas dos contras eram muito graves. E havia também o problema do Irã. Então ele me pediu pela última vez. E eu expliquei a ele: "O sr. está derrotado".
Stone – Mas North pediu especificamente o quê?
Noriega - Eles não tinham capacidade de combate, precisavam de homens treinados. Os EUA haviam fracassado com os contras, que não valiam nada. Eles queriam que nós entrássemos na Nicarágua. Eu expliquei a eles o engano que estavam cometendo. Eu disse a eles que estavam pensando que os sandinistas eram os civis armados ignorantes de antes, que lutavam contra Somoza. Mas os sandinistas haviam aprendido estratégia com os soviéticos. Então os contras não podiam competir com eles.
Stone – É exata a história de José Blandón sobre Fidel Castro ter ficado bravo com o sr. porque o sr. teria invadido o laboratório de cocaína de Darien (uma base do cartel de Medellín localizada na selva panamenha)?
Noriega - Não é verdade. Blandón foi a testemunha que eles levaram ao Congresso e usaram para o indiciamento. Mas Blandón não ratificou suas acusações.
Stone – Mas o sr. sabe que nos últimos anos a ligação de Fidel Castro com o narcotráfico parece ter sido comprovada, como também o dos sandinistas.
Noriega - – É tudo muito confuso. Sugiro que você procure mais informações. Eles não têm provas de nada.
Stone – Quais eram suas relações pessoais com Fidel?
Noriega - Nunca falávamos sobre drogas nem nada disso. Falávamos de política internacional. Os Estados Unidos sempre me procuraram como canal especial para resolver pequenos problemas. Quando eles invadiram Granada cometeram um engano e estavam atacando uma posição militar, só que ela ficava atrás de um alojamento de estudantes americanos, então pediram a Castro que não lutasse.
Stone – Então o sr. ligou para Fidel Castro para assegurar que a proteção dos estudantes?
Noriega - Sim, eu telefonei para Fidel e lhe disse que os EUA queriam que os cubanos não revidassem o ataque. Que eles não queriam que algum dos estudantes morresse. A chamada foi com Bush, o sr. Casey e eu num telefone, e em outro telefone era eu com Fidel Castro.
Stone – O sr. deve saber que o cartel de Medellín foi muito poderoso na América Latina no início dos anos 80, e eles devem haver contatado o sr. em algum momento? Pablo Escobar foi ao Panamá em 1984.
Noriega - O DEA (Drug Enforcement Agency, o órgão de combate às drogas do governo norte-americano) trabalhava no Panamá em tempo integral. Eu nunca me encontrei com Escobar. Nunca estive em Medellín. Quando eu ia à Colômbia, eu era convidado oficialmente pelo governo, pelo Exército. Eu não ia de forma clandestina. Eu ia de modo normal, com guarda-costas. E havia acordos assinados para um combate conjunto EUA/Panamá ao narcotráfico. Nós desferimos golpes duros contra o cartel de Medellín. Rapaz, confiscamos muito dinheiro deles.
Stone – O sr. está sabendo de um novo livro a ser lançado, por Billy St. Malo? No livro ele diz que em 1987, ele e Michael Kozak (funcionário do Departamento de Estado americano) estavam tentando fazer um acordo entre o sr. e os americanos, para tirar o sr. do Panamá. Ele diz, o que é interessante, que Reagan e Shultz queriam fazer um acordo mas que Bush e Baker não queriam, porque Bush estava concorrendo à presidência. Ele não queria ser visto como sendo "complacente com as drogas". E na última hora foram Bush e Baker que subverteram o acordo.
Noriega - Bush não tinha influência. Quem tinha a influência toda era Reagan. Mas deixe-me dizer o seguinte: em primeiro lugar, se eu fosse culpado das acusações de narcotráfico feitas contra mim pelo promotor americano em Miami, eles não teriam querido fazer um acordo comigo. Em sendo, não aceitei a oferta deles porque um grupo do estado maior militar me disse para não aceitar.
Stone – Por quê? O que era o acordo?
Noriega - Era um insulto ao Panamá. Porque os EUA estavam impondo condições. As condições eram que eu deixasse o país, mas que antes de sair entregasse o governo à oposição, eliminasse os sindicatos e o PRD (Partido Revolucionário Democrático), os tribunais de justiça... Tomei a decisão de não aceitá-lo. Havia a soberania do meu país a considerar. Era chantagem. Eles estavam me mandando sair. Quanto dinheiro você quer? Quantos amigos você quer levar junto? Vamos enviar você à Espanha. Vá. Então isso se chama chantagem. Eles estavam fazendo comigo a mesma coisa que haviam feito com Duvalier.
Stone - Então, quando o sr. negociou este acordo, estava comprando tempo?
Noriega - Negociei? Eu os ouvi até o fim. Eu tinha meus advogados no Panamá e tinha os políticos para discutir com eles.
Stone – Está certo, mas o sr. realmente disse algumas coisas sobre Bush depois de ser preso. O sr. ficou furioso com Bush.
Noriega - O que quer que eu tenha dito não foi importante. Mas eu não dei qualquer declaração forte ou prejudicial a Bush.
Stone – Então o sr. não tem ressentimentos em relação a Bush? E quanto à invasão?
Noriega - Hoje não tenho mais. Eu, enquanto cristão, o perdoei.
Stone – O sr. é católico?
Noriega - Sou cristão.
Stone – Pensei que o sr. fosse budista.
Noriega - Tenho alguma compreensão do assunto porque fui ao Japão... Eles me convidaram a ir aos templos, e aprendi sobre a filosofia da Soka Gai Nishen Reshoshu, uma organização internacional que busca a paz mundial.
Stone - Quero repetir uma pergunta, para aprofundar sua resposta. Na sua opinião, o que motivou a mudança em seu relacionamento com os EUA?
Noriega - O que fez os EUA se voltarem contra mim foi minha recusa em aceitar suas condições políticas que violaram o Tratado do Canal. Primeiro, eles queriam manter a escola em Fort Gulick. Queriam uma ampliação do prazo. E eu não aceitei. Gulick é uma escola de treinamento para militares. Era chamada Escola das Américas, e todo mundo da América Latina vai ao Panamá, a esta escola, para fazer treinamento com o exército americano. O tratado previa a devolução da escola ao Panamá em 1984. Mas quando chegou 1984, eles queriam negociar. Era muito importante para eles manter a escola, porque estavam treinando exércitos latino-americanos ali.
Stone - Então sua teoria é que os EUA não querem, na realidade, abrir mão do Canal?
Noriega - O tratado assinado por Carter indica que o Panamá tem que possuir uma força armada, para que os EUA possam entregar a defesa do Canal ao país. É por isso que eles destruíram as forças de defesa, a FDP, na invasão.
Stone - Perguntei sobre isso a vários militares americanos e eles dizem que não é verdade. Porque, com a tecnologia atual, não é necessário manter soldados americanos ali. O Canal pode ser monitorado desde a Flórida, com tecnologia de satélites.
Noriega - Não é o Canal em si. É a localização estratégica. Não é em Costa Rica, não é na Colômbia, é apenas na ilha de Galeta (no oceano Pacífico, perto do Panamá) que existe o ponto de detecção para toda a América do Sul, a América do Norte e o Caribe. É o único ponto do mundo. Eles dizem que não estão mais interessados nas bases no Panamá. Mas no ano 2.000 vão exigir uma base no Atlântico e outra base no Pacífico. Não dá para monitorar desde a Flórida.
Stone - Há alguma outra coisa que o sr. gostaria de falar?
Noriega - Compreendo que a natureza de sua profissão é sensacionalista. Não procuro mudar o que você acredita. Mas quero dizer a você que existe outra verdade nesta situação. Espero que com seu profissionalismo e suas raízes poéticas você descubra que aqueles que lutam por seu país, contra a injustiça, correm o risco de minha situação. Eu poderia ter morrido. Havia um plano para fazer comigo como fizeram com Maurice Bishop, em Granada.
Stone - Gosto do sr., mas que também não posso retratá-lo como um nobre...
Noriega - Eu não sou. (ri)

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