São Paulo, domingo, 27 de março de 1994
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'A Nascente", um cult capitalista

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

"A Nascente", um cult capitalista
Por incrível que pareça, Ayn Rand está de volta. Um ano atrás, deparei-me com suas obras completas, reeditadas em "pocket" e dispostas em destaque numa livraria do aeroporto de São Francisco. A que se deveria tão inesperado "revival"? Efemérides redondas? Nenhuma. Ela morreu em 1982 e só completaria 90 anos em 1995. Consequência da derrocada comunista? Está esquentando. De imediato planejei escrever algo a respeito. Dei de cara, há duas semanas, com a tradução brasileira de "The Fountainhead" (A Nascente), em cuja orelha descobri que também aqui já lançaram "Atlas Shrugged" (e não "rugged" como está impresso), com o título de "Quem é John Galt".
Antes de revelar quem é John Galt –e, acima de tudo, quem é Howard Roark, o protagonista de "A Nascente"–-, uma curiosidade: a edição de "The Fountainhead" foi patrocinada pelo Ateneu Objetivista, entidade porto-alegrense, fundada em 1992 e sem fins lucrativos.
Apesar do nome, o objetivismo é uma doutrina que não consta dos compêndios de filosofia. Em seu horizonte filosófico só existem dois tipos de homem: o criador e o parasita. O primeiro –individualista, egotista, independente, íntegro– se preocupa em conquistar a natureza; o segundo, alimentado pela mente de terceiros, se preocupa em conquistar os homens (ou por outros homens ser conquistado). Desse coquetel de Descartes com Kant, Hegel e Nietzsche saiu um drinque para darwinista social nenhum botar defeito.
O homem ideal preconizado por Rand só pode existir em sociedades capitalistas onde prevaleça o mais desbragado "laissez-faire" econômico. Personagens de gibi para uma clientela livresca, Howard Roark e John Galt são heróis de uma América em perigo, mas que por eles pode ser resgatada –dos desvios do Big Business e seu individualismo negativo (sopeados por Roark) e das ameaças do socialismo (resistidas por Galt).
Roark é um arquiteto que foi expulso da faculdade por discordar da orientação passadista (ou neoclassica) dos professores, e leva anos dando murro em ponta de faca, até sua arquitetura visionária, modernista, futurista etc, ser aceita pelo "establishment" americano. Por se recusar a qualquer tipo de concessão, perde empregos, passa necessidades, sujeita-se a mourejar numa pedreira. Se Roark gritasse "shazam!", um raio cortaria o céu. Sua odisséia egotista acabou no cinema em 1949, num filme estrelado por Gary Cooper e Patricia Neal, dirigido por King Vidor e aqui lançado com o título de "Vontade Indômita". Vidor queria Humphrey Bogart na prancheta, mas se Cooper não convence como um criador urbano dotado de uma inteligência superior, a Bogart faltaria o primitivismo que confere a Roark uma extravagante aura de bárbaro esclarecido. Bárbaro o bastante para iniciar sua relação amorosa com Dominique com um estupro.
Roark é muito mais que o retrato hagiografado do arquiteto Frank Lloyd Wright. Rand idolatrava Wright, mas Roark tem poderes que seu modelo jamais sonhou possuir. Ela própria reconhecia ter feito de Roark "uma abstração de forca tornada visível", um homem de aço que, a meu ver, talvez merecesse um drama dirigido por Leni Riefenstahl. Roark era capaz de proezas dignas de uma medusa. Até Dominique, a musa do romance, perdeu o rebolado ao encará-lo pela primeira vez:
"Ela ficou imóvel, porque sua primeira percepção não foi a da visão, mas a do toque: a consciência, não de uma presenca visual, mas de um tapa na cara. Ela levantou desajeitadamente uma mão ao lado do corpo, os dedos separados no ar, como se estivessem se apoiando numa parede. Sabia que não conseguiria se mexer até que ele lhe desse permissão."
Nascida na Rússia, mais exatamente em São Petersburgo, Rand, que na realidade se chamava Alice Rosenbaum, devotou sua vida a combater o coletivismo como o supremo horror sobre a face da Terra. Desprezava o homem da rua. Sua atenção e suas metáforas estavam sempre voltadas para o alto. E é no alto que terminam as quase 700 páginas de "A Nascente": "Então havia apenas o oceano e o céu e a figura de Howard Roark."
Nos EUA desde 1926, onde adotou seu pseudônimo (Ayn é uma corruptela de "I", eu em inglês, e Rand, uma homenagem à máquina de escrever), virou best-seller nos anos 40 e guru de universitários americanos na década seguinte. O mais afoito deles, Nathaniel Branden, foi procurá-la em sua casa na Califórnia, em 1950, e de lá saiu convicto de que seria para ela o que Pedro foi para Cristo.
E assim surgiu o Nathaniel Branden Institute, "think tank" devotado a discutir e disseminar a filosofia objetivista. Rand era casada, com um sujeito chamado Frank O'Connor, Nathaniel estava noivo de uma objetivista (Barbara). Um dia, porém, a carente Rand desceu do pedestal e entregou-se ao idolátra. O caso não acabou com o casamento dela, mas acabou com o dele. Quando a diferença de idade comecou a pesar, Nathaniel, 25 anos mais novo que Rand, trocou-a por uma jovem. Não sem antes se despedir com uma carta arrematada com esta confissão: "Eu ainda a venero como uma deusa da razão."
Por não ser uma supermulher, Rand se descabelou, xingou o amante de canalha e porco nojento, e, conforme Barbara Branden contou em "The Passion of Ayn Rand" (Doubleday), ainda lhe deu três bofetadas. Em seu livro de memórias, "Judgement Day" (Houghton Mifflin), Nathaniel diz que foram só dois tabefes.
Às vezes me pergunto o que Rand acharia de Madonna e Camille Paglia. Talvez preferisse Margaret Thatcher. Madonna flerta em demasia com signos religiosos e Paglia –-bem, Paglia pertence a um mundo em que Rand, apesar de ligada à cultura pop (adorava as aventuras de Perry Mason, James Bond e Mike Hammer), teria dificuldade de se enturmar. A arquitetura pós-modernista lhe provocaria urticárias. Rand era contra religião ("um entrave ao progresso humano") e a favor do aborto (vergastou num ensaio a encíclica papal "Humanae Vitae"), o que fez dela uma direitista "sui generis", pouco ou nada assimilável pelos seus supostos aliados.

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