São Paulo, domingo, 27 de março de 1994
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Spielberg e a sobrevivência

BORIS FAUSTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Shoa", de Claude Lanzmann, e "A Lista de Schindler", de Steven Spielberg, são dois filmes profundamente contrastantes, embora se aproximem no tema: o extermínio dos judeus, no curso da Segunda Guerra Mundial.
Lanzmann recusa a reconstrução dos fatos e as parcas imagens humanas que restaram deles. Não há em "Shoa" crianças esquálidas, cadáveres empilhados. Quando muito, surgem vestígios materiais dos campos de concentração. Como diz Lanzmann, o filme é sobre a morte e não sobre a sobrevivência. Morte expressa pela fala de personagens reais que viveram na época, com um impacto extraordinário.
Spielberg segue o caminho inverso. "A Lista de Schindler" lida com a sobrevivência, rente à morte, sintetizada na frase talmúdica: quem salva uma pessoa salva a humanidade. Além disto, trata de reconstruir visualmente o processo de extermínio de milhões de judeus. Os filmes anteriores de Spielberg não o credenciavam para a concretização deste intento ambicioso. Tanto pela temática quanto pela forma, são produtos de massa, em que os efeitos especiais se sobrepõem à qualidade cinematográfica. Apesar dos antecedentes, Spielberg realiza um filme forte que alcança, a um tempo, o espectador intelectualizado e o frequentador médio das salas escuras.
"A Lista de Schindler" é essencialmente um filme sobre um industrial alemão que salvou a vida de mais de mil judeus, ou sobre o Holocausto? Em entrevista publicada em "Le Monde", Lanzmann localiza em Schindler o foco central do filme. Seria através de sua figura que a tragédia judaica aparece. "A Lista de Schindler" não
passaria, no fundo, de um filme de aventura, uma espécie de "Caçadores da Arca Perdida", com pretensões à seriedade.
A meu ver, o filme busca lidar com a interação entre o caso excepcional de um oportunista alemão que se converte em herói salvando judeus e o drama social da
comunidade judaica. O filme alcança seu nível mais alto quando reconstrói a tragédia de Cracow e às vezes patina quando tenta reconstruir a figura de Schindler.
Essa figura encerra um mistério.
O que teria levado um industrial alemão, inscrito no partido nazista, à opção de salvar a vida de seus operários judeus, dilapidando uma fortuna acumulada pela via da esperteza e do trabalho escravo? Falando recentemente sobre ele, sua mulher octogenária acentua a ambiguidade: Schindler era preguiçoso, arrogante, infantil, não confiável em matéria de dinheiro. Mas, –diz ela– sob certos aspectos era um homem de princípios.
As cenas iniciais de "A Lista de Schindler" introduzem o personagem. Spielberg nos conduz a um cabaré de Cracow, misto da atmosfera dos filmes da UFA e de Bogart. Sem nenhum traço de adesão ideológica ao nazismo, Schindler inicia a carreira ainda incerta de aproveitador da guerra, subornando oficiais alemães. Em uma ótima sequência, surge aí como um "dandy" oportunista. O que o leva à transformação? Choque moral, sentimento de culpa são explicações insuficientes. O filme não elabora a complexidade do personagem, saltando do oportunismo à comiseração pela sorte dos judeus e, por fim, ao heroísmo.
As sequências menos convincentes de "A Lista de Schindler" estão ligadas ao personagem tido como central: sua prisão por ter beijado uma menina judia, o discurso-clichê na fábrica, quando a guerra termina, dirigido aos operários e aos SS e, sobretudo, a lacrimosa explosão por não ter sido capaz de comprar mais vidas.
Em contraste com a figura mal resolvida de Schindler, o tratamento dado à comunidade judaica é excelente. Para Spielberg, há um traço básico de identificação da comunidade: o conjunto de preceitos integrados em ritos e práticas religiosas. O filme se abre com a chama de duas velas que vão se extinguindo e com uma cerimônia
religiosa. Passados os anos da tragédia, as velas são reacesas –uma metáfora da sobrevivência. As raras orações, no curso do extermínio, são instantes de audácia e de afirmação do grupo. São elas também que marcam o fim dos tormentos e da guerra.
A religião cimenta a identidade, mas isto não significa que a comunidade seja homogênea, no plano social e do comportamento, e nem que não possa ser individualizada.
A cena dos judeus, barganhando com Schindler e afinal fechando negócio, não conduz ao estereótipo da identificação dos judeus com o dinheiro, como Lanzmann afirma. Pelo contrário, afasta-se da idealização edificante, mostrando um estrato da sociedade judaica que, em meio a condições dramáticas, não se despe, nem poderia despir-se, de sua forma de lidar com o que lhe é específico.
Mas a comunidade não se expressa apenas através dos homens de negócio. Expressa-se também no desalento do professor universitário de história –personagem
execrável aos olhos dos nazistas, na dupla condição de judeu e intelectual–, sem possibilidade de encaixar-se na categoria "privilegiada" de "trabalhador essencial".
Expressa-se na figura do escrupuloso administrador da fábrica, nas mulheres tentando poupar seus filhos, nos meninos convertidos em ratos de esgoto.
No plano do comportamento, Spielberg evita o recurso convencional às atitudes abertas de resistência. Ao contrário, não recusa a questão delicada dos judeus que
tentaram organizar a tragédia e dos que se converteram em elos da corrente de extermínio, eles também afinal exterminados; ou a disputa por espaço vital nos esgotos
fétidos.
Ao mesmo tempo, sublinha o destino trágico da coletividade judaica, simbolizada na história dos judeus de Cracow. Centenas de anos de perseguições, de aprendizado de táticas de resistência miúda, levam-nos a encarar a solução final como mais um episódio de violência, entre tantos outros. Disciplinados, meticulosos, registram seus nomes, local de residência, bens que possuem, sem encarar o pior. Como espectadores, sabemos o final da história, mas nem por isso deixamos de ficar com a respiração suspensa, na esperança emocional de que o filme desvie a história de seu curso.
Mas a coletividade não é tudo.
Spielberg não abandona o indivíduo em nome do grupo. Como diz o crítico inglês John Gross ("New York Review of Books", fevereiro de 1994), há no filme um admirável equilíbrio entre o retrato de uma imensa tragédia coletiva e o reconhecimento de que aqueles que foram apanhados na armadilha viveram seu destino um a um. Ao longo da narrativa, sem ostentação, Spielberg põe em relevo uma face, um gesto, uma reação fugidia, umas poucas palavras.
Os marcos do Holocausto são reproduzidos em algumas sequências muito expressivas, sobressaindo, a liquidação do gueto de Cracow. Além dela, lembremos um não-identificado Mengele, em mortífera operação sanitária; ou a tenebrosa chegada das mulheres a Auschwitz, vindo do campo de concentração de Plaszow, demonstrando como até o horror comporta distinções. A ausência das mesas de seleção provoca pânico como índice de que a seleção já foi feita: todas, em princípio, foram selecionadas para a câmara de gás e o forno crematório.
Sem ser muito sublinhado, um diálogo expressa toda a extensão da tragédia que alcança o povo judeu. É o diálogo das mulheres amontoadas no dormitório do campo de Plaszow sobre os rumores da existência de uma política de solução final para a questão judaica. Uma elas insiste em que os rumores não têm sentido, pois os judeus
são mão-de-obra preciosa para os nazistas.
A esperança de que o nazismo se guiava por algum tipo de racionalidade –mesmo que fosse uma racionalidade econômica baseada no trabalho escravo– era vã. A lógica de Hitler e sua camarilha concretizava-se em uma operação de extermínio, como nunca se vira na história da Europa.
Depois de uma escorregadela grandiloquente, em que Israel se abre aos judeus, indesejáveis a leste e a oeste, "A Lista de Schindler" chega a um belo final. No
cemitério latino de Jerusalém, estampado a cores, com o capim avançando sobre os túmulos, o ar de semi-abandono, reconstrução histórica e realidade se aproximam. As figuras reais, que prestam uma homenagem póstuma a Schindler, estão em linha de continuidade com a recriação de seus dramas de juventude. Mais do que isso, o documentário-ficção, narrado em preto-e-branco, acaba se impondo, em sua esmagadora realidade.

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