São Paulo, domingo, 27 de março de 1994
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Nunca mais

Trinta anos depois do movimento militar que depôs o presidente João Goulart, não surpreende que uma ponderável maioria de brasileiros consultados pelo Datafolha –em pesquisa divulgada no caderno especial que esta Folha publica hoje– diga que vivia melhor durante o período militar do que agora. É evidente que os pescadores de águas turvas, que não faltam neste momento de crise aguda em todos os terrenos, poderão interpretar o resultado da pesquisa como uma espécie de convite ou incitação para que se volte ao passado, ao autoritarismo que se manteve durante 21 longos e obscuros anos.
Mas a interpretação mais razoável para esse saudosismo é outra e bem mais simples. Em tempos de crise, o normal é que se idealize o passado. É verdade que, em circunstâncias normais, este não seria um passado tão remoto a ponto de as pessoas se esquecerem das reais condições em que viviam. O ciclo militar se encerrou faz apenas nove anos, o que é praticamente nada em termos históricos.
Ocorre que a história brasileira dos anos recentes é tão tumultuada, tão acidentada, que parece que faz muito mais tempo. Nesse curto período de nove anos, o país viveu a maior mobilização popular de sua história, em torno do grito de "diretas já" –no que, de resto, era uma condenação explícita ao regime militar então agonizante. Viveu também a derrota da emenda que tentava dar forma legal ao grito das diretas cantado nas ruas.
Trocou a esperança no voto direto pela crença em que um presidente como Tancredo Neves, mesmo eleito indiretamente, devolveria horizontes a uma nação angustiada. Chorou, em seguida, a agonia e morte de Tancredo, levado a um hospital na véspera da posse para dele só sair para o túmulo.
Viveu ainda a euforia e a frustração do Plano Cruzado, as esperanças e decepções da "Constituição-cidadã", o encanto e o engodo de Fernando Collor, primeiro presidente eleito diretamente depois de 29 anos de silêncio das urnas.
É uma história tão carregada de inusitados que, se fosse contada pela pena de um Gabriel García Márquez ou qualquer outro autor do realismo mágico latino-americano, pareceria ficção e não a mais pura –e dura– realidade.
É natural, portanto, que a sequência de emoções fortes oferecida à sociedade durante o curto período democrático faça com que o ciclo militar pareça ter sido melhor, mais tranquilo, mais próspero.
Mais tranquilo, certamente foi –num certo sentido. Impôs-se, pela força, a paz dos cemitérios, aboliu-se o dissenso, pela censura e pelo arbítrio. Não se resolveu, é evidente, um só dos inúmeros problemas da sociedade, mas, ao suprimirem-se a discussão e o debate, parecia que os problemas inexistiam. Era mais fácil censurar o noticiário sobre o surto de meningite que ocorreu em São Paulo, no início da década de 70, do que cuidar eficazmente da saúde pública –como se o que não se pudesse noticiar de fato não existisse.
Que o país cresceu, e muito, durante o ciclo militar é inegável. Que esse crescimento beneficiou muito mais a minoria já rica, é igualmente inegável. Prova-o, de resto, o fato de que a sociedade começa a se mobilizar para tentar ajudar os 32 milhões de miseráveis que são o alvo da campanha contra a fome. Só a extrema má-fé permitiria supor que esse lote de excluídos de uma vida digna pode ser debitado exclusivamente na conta da democracia.
Seja como for, é crucial assinalar que não basta pregar as virtudes do regime democrático. Mesmo que o autoritarismo tivesse sido um êxito completo do ponto de vista econômico, seria inaceitável porque a plena vigência das liberdades públicas é uma característica das sociedades modernas e civilizadas.
O problema é que a liberdade, por si só, não enche barriga, não diminui a exclusão social, não abate a inflação, não fornece educação de boa qualidade, não dá assistência social e previdenciária a todos os que delas necessitam. A liberdade tem de ser, também, eficaz na resolução dos problemas que angustiam os cidadãos. A democracia brasileira, dói dizê-lo, não conseguiu ainda mostrar que é capaz de conciliar as liberdades públicas com a solução dos problemas básicos da maior parte da população.
Trinta anos após 1964, esse é o grande desafio a enfrentar, para evitar que a democracia corra riscos. Se ela não conseguiu, ainda, dar conta das angústias do cotidiano, suprimi-la não seria a solução, mas só a criação de ao menos mais um problema: a impossibilidade de expressar a angústia de cada um.

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