São Paulo, sábado, 2 de abril de 1994
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Georg Solti faz circo de timbres com "Falstaff"

LUÍS ANTÔNIO GIRON
DA REPORTAGEM LOCAL

Chega ao CD a montagem de "Falstaff" (1893), última ópera do compositor italiano Giuseppe Verdi (1813-1901), dirigida em 1993 pelo maestro húngaro Georg Solti, 82. A gravadora Polygram acaba de importar dos EUA a caixa com dois CDs e o libreto da ópera, lançados no fim de 1993.
Solti produziu uma versão controversa da obra. Os italianófilos afirmam que o maestro se limitou a "wagnerizar" a partitura, tornando-a sinfônica. Argumentam que Verdi determinou um uso discreto dos instrumentos. Solti teria abusado deles. Já os wagneritas desaprovaram a leitura pelo motivo inverso: os cantores usaram de muito histrionismo e desviaram a atenção do ouvinte da partitura para os efeitos cômicos.
Os oponentes se cobrem de engano. Dão como defeituosos dois achados do maestro. Solti exagerou tanto na potência orquestral como na comicidade. Com isso, ele consegue fazer a ópera bufa extravasar para seu pólo oposto, a missa solene. Cria um contraste apropriado para dar conta do narcisismo hilariante do herói, o conquistador John Falstaff.
Solti expandiu o projeto de Verdi. O compositor calhou de pingar o ponto final de sua carreira operística com uma gargalhada. Solti o tranforma em letra capitular da comédia musical do século 20. É o escracho feito monumento.
Nem sempre rir por último é garantia de qualidade. Nada assegurava a Verdi que encerrar a carreira com uma ópera bufa fosse uma atitude sensata. Até Mozart, especialista no gênero, preferiu fechar as cortinas com um "Requiem". Verdi já estava com 75 anos de idade quando decidiu musicar "Falstaff". Começou o trabalho "puramente para passar o tempo, sem idéias preconcebidas, sem planos", conforme escreveu ao editor Giulio Ricordi.
Verdi queria compor para si próprio. Já estava satisfeito com suas até então 25 óperas, a última delas "Otelo" (1887), com libreto de Arrigo Boito baseado em Shakespeare, celebrada como obra-prima. Havia até composto seu "Requiem" quase quarenta anos antes, em 1874. A eternidade estava selada.
Por que não seguir o palpite de Boito? Este lhe sugeriu em carta de 1889: "Durante toda a sua vida você quis encontrar um bom tema para uma ópera cômica, o que prova sua aptidão natural para a nobre arte da comédia. O instinto é um bom guia. Existe apenas um modo de encerrar sua carreira de um modo mais esplêncido do que com 'Otelo', que é terminá-la com 'Falstaff'."
Boito se referia ao libreto que estava escrevendo, baseando-se em duas peças de William Shakespeare: "As Alegres Comadres de Windsor" e "Henrique 4º".
Verdi tinha realmente contas a prestar à ópera bufa. Havia composto apenas uma, e sem sucesso. Passou a compor sem muita convicção. Na correspondência com Boito, ele se queixava da idade e da saúde. Mas a reclusão criativa durante a feitura da ópera ganhou tamanha publicidade que ele se viu frente a uma cobrança pública. Terminou "Falstaff" em setembro de 1892, com mau-humor.
A ópera estreou no Scala de Milão em 8 fevereiro de 1893. Um sucesso, apesar de os críticos acusarem "wagnerismo" na partitura. Muita gente se chocou porque Verdi rompia com o esquema de ária e recitativo da ópera bufa. Ao longo de seus quatro atos, "Falstaff" se move aos trancos. Árias de bravura são interrompidas no auge por passagens em "parlando" (quase faladas) e levadas pelo convulso fluxo orquestral. Como se não bastasse, Boito forneceu consistência tragicômica ao personagem original de Shakespeare. O anti-Wagner virava casaca.
Solti gravou a ópera pela primeira vez em 1964, com o barítono Geraint Evans no papel principal. A leitura foi considerada excessivamente séria.
Voltou à obra no último ano, com idéias diferentes. Em março último, realizou as gravações em Berlim, com a filarmônica local e o barítono belga José Van Dam como Falstaff. Estreou a montagem no Festival de Páscoa de Salzburgo (Áustria) em abril de 1993. Com direção cênica do italiano Luca Ronconi, o mesmo Van Dam e a Filarmônica de Viena, a montagem fracassou. O público estranhou os exageros. Mas o CD prova que Solti obteve resultados interessantes. Van Dam está engraçado como debutante num papel geriártrico. Graciosa é a voz da soprano Elizabeth Schulz, como Nanetta. Mas basta ficar com a cena final para se ter certeza da qualidade. Ali, todos os personagens cantam: "Tudo no mundo é burla/ Ri bem quem ri/ a risada final". Essa profissão de descrença no mundo é construída numa fuga ao estilo do último Beethoven. Solti enfatiza a trama polifônica para sugerir que as missas mais solenes não passam de logro. Mas um logro com a Filarmônica de Berlim não deixa de ser uma glória.

Ópera: Falstaff
Compositor: Giuseppe Verdi
Libretista: Arrigo Boito
Músicos: José Van Dam, Paolo Coni, luca Cnonici, Luciana Serra, Coro da Rádio de Berlim, Orquestra Filarmônica de Berlim
Lançamento: Decca/Polygram
Quanto: CR$ 30 mil (dois CDs, em média)

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