São Paulo, sábado, 2 de abril de 1994
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FHC sai da Fazenda e Ricupero da floresta

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Li vários artigos de jornal, e até suplementos inteiros, sobre 30 anos do golpe militar de 1964, mas, por mais que procurasse, não encontrei qualquer referência ao modelo político instituído pela República de Costa Rica. A Costa Rica é um pequeno país centro-americano de apenas 51 mil quilômetros quadrados de superfície, e mais 3 milhões de habitantes, mas que, cansada dos golpes militares que a debilitavam e aborreciam, erradicou, juntamente com a malária, o Exército nacional.
Isto ocorreu no ano já relativamente longínguo de 1949, quando os costa-riquenhos substituíram o Exército por uma guarda civil, que vem dando boa conta do recado de manter a ordem e guardar as fronteiras sem ostentar em seu seio, como todos os exércitos de países subdesenvolvidos, aquela espécie de auréola de ligação com o sagrado que acaba permitindo aos que usam farda todos os pecados e punição nenhuma.
Só agora, por exemplo, ao lançar o livro "O Calvário de Sônia Angel", pode seu pai, João Luiz de Moraes, apontar os responsáveis pela morte da filha em 1973: general Humberto de Souza Melo, que em 73 comandava o 2º Exército, e o coronel Adyr Fiúza de Castro, que comandava então o DOI-Codi do Rio.
O autor do livro e pai de Sônia é tenente-coronel aposentado e professor de matemática. Em 1973, ao tomar conhecimento da versão oficial da morte da filha –que, como subversiva e mulher do subversivo Stuart Angel, teria sido abatida a tiros– aceitou-a. Só muito depois precisou enfrentar a cruel realidade de que a filha tinha sido torturada e estuprada, antes de liquidada com dois tiros na cabeça.
Foi só nessa ocasião que João Luiz de Moraes entendeu também um dos gracejos mais sinistros da história do Brasil. Quando o pai ainda procurava saber como de fato morrera Sônia, o coronel Fiúza lhe mandara, sem maiores explicações um cassetete. Esse cassetete fora um dos instrumentos da tortura de Sônia.
História terrível, hão de concordar todos. Alguns, porém, tentarão abrandar as coisas: crimes, horríveis acontecem em qualquer país. Eu vos digo no entanto que numa ditadura militar como a que nos sufocou de 1964 a 1985 horrores assim não só ocorrem, como parte da rotina, como só vêm a ser conhecidos por acaso ou porque a ditadura acabou. Na minha modesta opinião querer voltar a um regime como aquele é tara.
Viva a Costa Rica.
O Inimigo é o povo
Quando Ortega y Gasset escrevia sua "Espanha Invertebrada" a Espanha era um país subdesenvolvido, uma espécie de país latino-americano incrustado na Europa. Não só já era um sonho passado e enterrado do o império de Felipe 2º, como acabara de desmoronar o limitado império espanhol da América Latina. Não só as antigas colônias tinham sido libertadas pelos Bolívar e os San Martin, como, em 1898, a Espanha, em guerra forjada pelos Estados Unidos, perdera Cuba também
Isolado, repelido, o exército começa a viver de seus próprios ressentimentos. Aconteceu então, no caso espanhol que uma necessária expedição ao Marrocos pôs de pé as forças armadas contra a vontade do povo. O exército recuperou parte da sua auto-estima. E, ao voltar do Marrocos, passou a ser "uma escopeta carregada que não tem alvo contra o qual disparar. Desarticulado das demais classes sociais –como estas, por sua vez, estão desarticuladas entre si – sem respeito por elas e sem sentir sua pressão refreadora cai o Exército em perpétua inquietação, querendo gastar a pólvora espiritual acumulada e sem encontrar uma empresa à altura em que fazê-lo. Não era consequência inevitável de todo esse processo que o exército caísse sobre a própria não e aspirasse a conquistá-la?"
Resumida, a tese de Ortega é que um país sem inimigo externo sem império a administrar não precisa de um Exército. É que quando um Exército fica parado dentro de um país parado tem logo a idéia de chegar ao poder. Por outras palavras, o Exército se transforma num partido político, com a agravante de ser o único partido político que dispõe de Vila Militar, de infantaria, tanques, aviões.
Pessoalmente, acho que nosso Exército desempenhou uma função importante no país depois da Independência, quando sopravam ventos separatistas um pouco pelo território nacional inteiro. O emprego da força armada para manter a unidade nacional, em lugar de deixar que nos pulverizássemos em republiquetas, valeu. O papel do Exército na guerra do Paraguai já é discutível, tão discutível que até hoje são secretos os documentos referentes a um conflito que terminou em 1870.
Está virando consenso, agora, que a despeito das injustiças que se cometeu e mesmo da corrupção que tolerou e estimulou, o refime militar foi positivo. Teria "modernizado" o país e sua economia. Pela parte que me toca acho que um país do tamanho do nosso que não se modificasse e atualizasse num período de 20 anos só seria comparável a essas baleias patetas que acabam encalhando na praia e morrendo na areia.
Ricupero sai da floresta
No momento em que escrevo me vejo cercado de jornais que louvam o fato de que o Ministério da Fazenda, tornado órfão pela retirada do ministro Fernando Henrique Cardoso, ganha outro pai na pessoa do embaixador Rubens Ricupero. Para mim, a notícia é melancólica. Volto com ela, a uma orfandade crônica, incurável, a floresta amazônica.
Na opinião geral, Ricupero é uma espécie de homem público capaz de assumir com competência e trabalho sério qualquer função. O fato de um "cadre" dessa qualidade ter sido colocado num ministério feito para ele, sob medida, e intitulado da Amazônia e Meio-Ambiente era extremamente promissor. Nesta nossa trêfega República a existência da maior floresta do mundo não passa de um aborrecido problema: que se há de fazer de um matagal infindável, todo cortado de rios exagerados, pululante de índios, seringueiros, garimpeiros que lutam pela mesma terra, a qual, no fundo, já pertence à Supergasbrás, Bradesco, Matsubara, Lunardelli? O embaixador Ricupero dava a impressão de já haver mergulhado na tarefa difícil mas fascinante de tornar a Amazônia um problema compreensível. Talvez até solúvel.
Em princípio me parece mais fácil, muito mais fácil, encontrar no Brasil um bom ministro da Fazenda –isto é, um bom administrador da inflação nacional– do que alguém capaz de afinal franquear aos brasileiros a verdadeira posse e fruição do esplêndido patrimônio que comoveu Humboldt e Euclides da Cunha e que temos tratado até agora como se fosse uma praga, uma enxaqueca.

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