São Paulo, sábado, 2 de abril de 1994
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Brando e Doris Day fazem hoje 70 anos

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Filme: "Caçada Humana" (The Chase). Diante das câmeras, Marlon Brando e Jane Fonda. O diretor Arthur Penn diz "corta!", Jane Fonda põe as mãos na cintura, olha fixo no rosto de Brando e desabafa: "Deus do céu! Cara, você é simplesmente o maior ator deste mundo".
Brando, que faz hoje 70 anos, apenas sorriu, mas seu ego bateu no teto. Há muito não ouvia alguém repetir o que se tornara corriqueiro nos anos 50. Em 1966, quando filmou "Caçada Humana", seu prestígio como ator estava lá embaixo, sob os escombros de quatro ou cinco notórias porcarias.
Em todo caso, Sérgio Porto não estava no seu melhor dia quando, após ver uma daquelas porcarias, vaticinou: "Os críticos ainda vão descobrir que Marlon Brando é um tremendo canastrão". Se havia alguma suspeita no ar, elas se dissipariam por completo em 1973, com "O Último Tango em Paris", a prova cabal de que Jane Fonda estava certa.
Se tivesse atuado com ele uns 10 anos antes, ela poderia também ter dito o que ninguém então discutia: "Deus do céu! Cara, você é simplesmente um dos atores mais bonitos deste mundo". Talvez, mesmo, o mais bonito quando tinha bíceps de atleta e seus personagens se chamavam Stanley, Johnny, Terry e pareciam uma reencarnação beatnik de São João Batista.
"Brando é o Valentino da geração bop", palpitou alguém, com a mesma precisão absoluta de quem, mais ou menos na mesma época, o definiu como "o Orson Welles dos atores". Ambos chegaram a Hollywood vindos da costa Leste, como meninos prodígios da Broadway, botando banca, exigindo autonomia, e jogando os seus extravagantes talentos contra a burocrática mediocridade da indústria cinematográfica. Brando teve mais sorte que Welles e soube administrar melhor o seu estrelismo.
Com seu magnetismo animal e um estilo modernista de interpretar e viver, desafiou a pasmaceira do "star system" e impôs um padrão de comportamento e idiossincrasia artística emulado com fanática devoção por mais de uma geração de atores, de James Dean a Jack Nicholson, passando naturalmente por Paul Newman, Steve McQueen, Zbigniew Cybulski e Jean-Paul Belmondo.
Qualquer aspirante a ator, nos EUA, sabe de cor o que ele disse a Rod Steiger na mais endeusada cena de "Sindicato de Ladroes". Ela virou um clássico da arte de representar, e não apenas um texto emblemático, como "Ser ou não ser..." ou "Mas Cesar é um homem honrado...", este por sinal também imortalizado por ele no cinema.
Brando precisou de apenas seis filmes -"Espíritos Indômitos", "Uma Rua Chamada Pecado", "Viva Zapata!", "Julio Cesar", "O Selvagem" e "Sindicato de Ladrões" -para firmar-se como o supremo ícone da rebeldia, da marginalidade e da solidão. No sétimo, como o Outro, ele descansou. "Desirée" era horrendo, obrigação contratual (ele já recusara ser o faraó de "O Egípcio"), mas nunca houve um Napoleão como Brando, para bem e para o mal.
Apenas nove dos 33 filmes em que atuou contribuíram para a sua reputação de forma positiva. Qualquer outro ator teria sido aposentado precocemente com as idiotices que ele, por contingências várias, aceitou fazer. Mas até com seus fracassos ele lucrou, infundindo a crença de ser um ator invariavelmente superior aos seus papéis. E sempre tão superior aos seus companheiros de elenco que até mesmo imóvel conseguia roubar-lhes todas as cenas.
Nem quando, fato raro, aceitou contracenar com alguém do primeiro time (John Gielgud e James Mason em "Julio Cesar", Anna Magnani em "Vidas em Fuga", Trevor Howard em "O Grande Motim", Jack Nicholson em "Duelo de Gigantes") deixou de ser o centro de gravidade do filme. "Apocalipse" não precisava dele para ser uma obra-prima, mas a expectativa que a sua aparição, nas sequências finais, gera na platéia é uma regalia a que só os verdadeiros mitos tem direito.
Ganhou dois Oscars (por "Sindicato de Ladrões" e "O Poderoso Chefão"), merecia ao menos mais dois (por "Uma Rua Chamada Pecado" e "O Último Tango em Paris"), mas nunca deu bola para prêmios, tanto que nem foi buscar a segunda estatueta que a Academia de Hollywood lhe deu.
Mandou em seu lugar uma atriz, vulgo Sacheen Littlefeather, fantasiada de índia e com um discurso contra a maneira como o cinema americano retratava os índios. Vivia o auge de mais uma das inúmeras campanhas políticas em que se meteu, a despeito dos riscos que pudessem trazer à sua carreira.
Deixou de filmar com Elia Kazan para dar forca ao engajadíssimo "Queimada", de Gillo Pontecorvo, e recusou várias propostas milionárias para atuar quase de graça em "Assassinato Sob Custódia".
Hoje Brando comemora 70 anos. Por coerência, não irá festejá-los como um comum mortal, soprando velinhas e fazendo tim-tim.
Deve ter se horrorizado ao saber que o prefeito de Omaha (Nebrasca), sua cidade natal, pretende brindá-lo como um busto em praça pública. Ao lado, quem sabe, dos bustos de Fred Astaire e Montgomery Clift, duas outras glórias da maior cidade do Nebrasca.
Dirigiu apenas um filme, "A Face Oculta" (One-Eyed Jacks), inteligente western que não teria saído melhor sob o comando de Stanley Kubrick, por ele demitido.

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