São Paulo, sábado, 2 de abril de 1994
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Vida de Doris não tem sido um 'milk-shake'

RUY CASTRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Não é apenas Marlon Brando que faz 70 anos amanhã. Doris Day também. Parece haver alguma coisa de perverso no fato de esses dois fazerem aniversário no mesmo dia. E apenas porque Marlon é considerado o símbolo da rebeldia no cinema americano e Doris o da suprema caretice.
Essas duas idéias nunca passaram de lenda, mas as pessoas insistem em acreditar nelas. Nem Marlon sempre foi "rebelde", nem Doris sempre foi "careta". Isso pode ser começado com a história de que Marlon não tomava banho (pensaram até em obrigá-lo a fazer um filme com Esther Williams para resolver o problema), ao passo que Doris sempre dava a sensação de ter saído do banho há 10 minutos.
Bem, vejamos. Como podia ser rebelde um sujeito que se diplomou com honras no Actor's Studio, onde Lee Strasberg tratava os alunos a chicote, e que, quando se mudou para Hollywood, levou a mãe para morar com ele? Esse era Marlon em 1950. Sim, ele fez alguns papéis de "rebelde". Mas por que confundi-lo com seus personagens? Fez também papéis de japonês, e nem por isso pensou algum dia em praticar harakiri.
Quanto a Doris, era "careta" porque, no começo dos anos 60, às vésperas da revolução sexual, rodou aquelas comédias com Rock Hudson, em que entrava e saía invicta. (O que você queria, se ela tinha Rock Hudson como galã). As pessoas se esquecem de que, na mesma época, Doris viveu uma mulher aterrorizada por Rex Harrison em "A Teia de Renda Negra", e que, antes disso, já tinha feito poucos e grandes papéis dramáticos.
Daí a frase de seu amigo, o pianista Oscar Levant, "Estou no cinema há tanto tempo que conheci Doris Day antes que ela ficasse virgem". Ele se lembrava dela em 1955 como a cantora Ruth Etting, em "Ama-me ou Esquece-me", sendo surrada e estuprada pelo gangster Marty the Gimp vivido por James Cagney. Ou de "O Homem Que Sabia Demais", de 1956, em que Hitchcock a fazia ser perseguida por sequestradores marroquinos com péssimas intenções. Onde estava a virgem?
Não nesses filmes, e nem na vida real. Mesmo assim o estigma da virgem grudou como chiclete. A verdadeira Doris só apareceu em 1974 com a publicação de sua autobiografia, "Doris Day: Her Own Story", ditada ao escritor A.E. Hotchner (o mesmo do respeitado "Papa Hemingway"). Foi quando se descobriu que a vida da "namorada da América" não tinha sido exatamente um "milk-shake". Duvida?
Ela nasceu em 1924, em Cincinatti, Ohio, com o nome de Doris Kappelhoff. Seu pai, maestro, era um alemão rígido e moralista. Carta noite, numa festa em sua casa, Doris viu-o transando com a melhor amiga de sua mãe no quartinho junto ao seu. Eles pensaram que ela estava dormindo. Doris tinha oito anos. Pouco depois, o maestro deu umas batutadas na família e foi embora.
O sonho da pequena Doris era dançar como Ginger Rogers. Ela e um garoto chamado Jerry ganhavam todos os concursos de dança em Cincinatti. Aos 14 anos, receberam um convite para um teste em Hollywood. Na véspera da viagem, Doris e alguns amigos saíram para comemorar e seu carro chocou-se contra um trem. Doris teve múltiplas fraturas na perna esquerda. Quase um ano depois, ainda de muletas, quis mostrar a sua mãe que já podia dançar de novo. O rádio tocava "Tea for Two". Ensaiou um passo de sapateado, a muleta escorregou e ela fraturou tudo de novo. Bye, bye, Fred Astaire.
Nos quase dois anos que passou no estaleiro, aprendeu a cantar ouvindo discos de Ella Fitzgerald, mudou seu nome para Doris Day (porque Kappelhoff não cabia em nenhuma marquise) e foi para Chicago com a orquestra de Bob Crosby. Dali pulou para a de Les Brown, onde conheceu um trombonista chamado Al Jorden. Largou a orquestra e se casou. Tudo isso antes de completar 17 anos.
Com dois meses de gravidez, descobriu que Jorden era um psicopata. Ele lhe dava surras colossais e foi um milagre que não abortasse. Depois de cada sova, ele se ajoelhava, pedia-lhe perdão e, no dia seguinte, outra surra. Quando o garoto nasceu, Doris batizou-o de Terry (em homenagem a "Terry e os Piratas", sua tira de gibi favorita) e divorciou-se de Jorden.
Assim que se viu livre, voltou para a orquestra de Les Brown e gravou "Sentimental Journey", que vendeu milhões e foi nº 1 no "hit parade". Mas, como as pessoas nunca aprendem, casou-se com outro músico, o saxofonista George Weidler, e largou de novo a orquestra. Esse segundo casamento durou menos ainda, porque Weidler percebeu que logo se tornaria "Mr. Doris Day". Ela sofreu com a separação, mas, levada pelos compositores Jule Styne e Sammy Cahn, fez um teste na Warner com Michael Curtiz e o resto você sabe.
Sabe como? Foi o seu terceiro marido, um agente chamado Marty Melcher, que a transformou na "virgem" – uma imagem que ela odiava. Em 1962, quando Doris já tinha 38 anos, ele fez dela a maior bilheteria do planeta. E o que fez com o seu dinheiro, de que controlava cada centavo? Enfiou-o numa rede de hotéis baratos, ações falidas, poços secos e negócios escusos, sem que Doris soubesse. Quando ele morreu, em 1970, ela descobriu que não tinha um centavo e que devia alguns milhões. Está até hoje pagando as contas.

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