São Paulo, sábado, 2 de abril de 1994
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Renúncia às rodelas de salame

SAULO RAMOS

Pagamos um preço caro por ignorar a ciência do processo constitucional. Se inauguramos a revisão da Carta Política, cumprindo dispositivo da própria Constituição, por que não podemos prosseguir nos trabalhos revisores pelo tempo que for necessário? Onde está escrito que não pode? Em que texto, contexto, pretexto, está fixada uma data para terminar? No regimento interno. Ora, regimento é alterável, ainda que seja regimento de cavalaria.
Nossa Constituição, mais do que qualquer outra nesse mundo, precisa ser revista em profundidade. Quase nada conseguiu-se nos primeiros meses de trabalho, porque os congressistas brasileiros, súditos de uma enorme preguiça, nem sabem o que querem em matéria de reforma. Nelson Jobim inventou a promulgação aos pedaços, por servilismo a Fernando Henrique. A primeira rodela, do chamado salame, saiu em forma de disposição transitória de um texto permanente, que ainda não existe.
Dizem que o Supremo Tribunal Federal fez acordo com o Congresso: se fosse marcada data para terminar a revisão, tudo bem. Caso contrário, seria declarada inconstitucional a promulgação das rodelas do salame, ou considerada esgotada a autorização do art. 3º, das atuais disposições transitórias.
O Supremo, em primeiro lugar, não faz acordo por baixo do pano. A versão é invencionice. Existe, sim, um "fumus boni iuris" na avaliação de que a Alta Corte possa declarar a inconstitucionalidade do processo revisor, se forem mantidas as esdrúxulas bolações do deputado Nelson Jobim, sobretudo a de continuar promulgando pedaços de textos constitucionais, o que, evidentemente, configuraria fraude ao sistema de emendas, instituído nas disposições permanentes.
Basta retirar-se do regimento interno o mostrengo das promulgações parciais, não voltar a repeti-las, pedir perdão aos deuses pelo primeiro pecado, assegurando que foi o último, e acabar com o prazo para terminar a revisão, prosseguindo-se, porém, nos trabalhos. Se encerrarem, para retomar em 1995, o art. 3º, tal como o gênio da lâmpada de Aladim (garrafa, seria melhor...), terá exaurido a obrigação de atender aos desejos do amo.
Somam-se contra a revisão a obstrução dos contras, o mudo e poderoso exército das estatais, a ambição política dos que se julgam poder ganhar as próximas eleições e influenciar na revisão à moda deles (estes querem o adiamento...). Por outro lado, pesam a irresponsabilidade e indiferença dos congressistas, que justificam ausências pela visita às bases, de olho na campanha eleitoral, mais importante do que as instituições. Entre os trabalhos atuais e as próximas eleições, haverá a Copa do Mundo. Ninguém é de ferro.
E há turminha que gosta de comer, às escondidas, pamonhas quentes, assadas nas crises, sonhando com golpe militar. Jobim, coitado, tem trabalhado, mas defende a tese de que se deve terminar agora a revisão porque pretende ficar na história como o salvador da cidadã.
Enfim, o processo revisor pode prosseguir, desde que não se revista de expediente fraudulento contra a sistemática de emendas, isto é, impõe-se a renúncia ao salame e às pamonhas.
O melhor para o país –e alguém pensa nisto?– seria por fim à revisão atual e aprovar-se uma disposição convocando para 1995, ou 1996, não importa quando, a instalação de uma Constituinte exclusiva, sem políticos, deputados ou senadores, apenas delegado eleito pelo povo para elaborar a Constituição e voltar para casa depois da promulgação. Aí, sim, haverá esperança de reforma séria. E nos livraremos dos perigos do salame e dos moles comedores de pamonhas em palha assada.

JOSÉ SAULO PEREIRA RAMOS, 60, é advogado em São Paulo. Foi consultor-geral da República e ministro da Justiça (governo Sarney).

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