São Paulo, domingo, 3 de abril de 1994
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A omissão do Estado e a delinquência juvenil

ANTONIO JURANDIR PINOTI

São 13h de um dia qualquer. A audiência está instalada. Escrevente a postos, advogado e promotor de Justiça compenetrados. Examino a pauta do dia e vejo que, como sempre, das dez audiências a maioria refere-se a furtos e roubos. Encaro o menor que vai ser julgado e faço-lhe algumas perguntas iniciais. Analfabeto, mal conhece a mãe, vive nas ruas e confessa o assim chamado crime a ele imputado. Findos os depoimentos, profiro a sentença à luz dos fatos, dos princípios gerais de Direito, da Constituição e de muita reflexão.
Ora, é desnecessário qualquer parecer de sociólogos para concluir-se que a predominância da prática de furtos e roubos sobre outros delitos está intimamente relacionada com a miséria de uma nação. Salvo as exceções, que servem para comprovar a regra, o menor que rouba e furta é um infeliz que não recebeu qualquer orientação familiar e tampouco o amparo do Estado. A este caberia assumir seu papel protetor diante do flagrante abandono em que vivem milhões de crianças e adolescentes no Brasil.
Diz a Constituição Federal em seu artigo 1º que um dos fundamentos do país é a dignidade da pessoa. Desse modo, é óbvia a conclusão de que um dos alicerces do país –a dignidade da pessoa– não está seguramente fincado no solo que o sustenta. Sim, por que alguém ousa negar que esses pobres e famintos brasileiros estão sendo tratados como indignos da sua condição humana?
Afirma também a Constituição que é dever do Estado e garantia de ensino fundamental gratuito e obrigatório (artigo 208). Essa solene garantia ganha ares de mofa e expõe o país ao escárnio mundial, singelamente porque o Estado, omisso, não cumpre seu dever. As praças, as ruas das grandes cidades estão repletas de crianças abandonadas roubando e furtando para comer. Essas pessoas existem. Elas não são invisíveis, apesar de muitos fingirem que sim. O que está esperando o Estado para cumprir seu dever e dar a elas pelo menos o ensino fundamental obrigatório?
Em seu artigo 3º diz a Constituição que um dos objetivos do país é a erradicação da pobreza e da marginalização sem qualquer forma de discriminação (artigo 3º). Pois bem, se hoje nem mesmo se empenha o Estado em dar educação a crianças carentes, de que forma e quando a pobreza e a marginalização começarão a ser erradicadas?
Essa lamentável indigência social deveria ser combatida por todos. O cruel é que existe uma parcela malsã da população e principalmente das nossas elites que têm ódio de menores carentes. Não conseguem enxergar neles nada senão o bandido de amanhã. Ao contrário de estender-lhes as mãos, pregam a sua morte, conforme fez o diretor de um jornal de Londrina, que publicou anúncio com os seguintes dizeres: "Mate um menor infrator" (Folha de 9 de março de 1994). Se não bastasse essa infâmia, um vereador de Novo Hamburgo, apenas por suspeitar das intenções de um menino que rondava sua casa, disse em plenário da Câmara: "Corri atrás para matar. Não matei porque não consegui" (Folha de 18 de março de 1994).
Notem como esse parlamentar representa os cidadãos, pobres na maioria, que o elegeram e pagam seu salário. Sua atitude em relação ao abandono de crianças é criminosa e comissiva. A atitude do Estado é omissiva. O resultado de ambas é o mesmo –o recrudescimento da delinquência juvenil.

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