São Paulo, domingo, 3 de abril de 1994
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Heranças deixadas pelo regime autoritário

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Na última sexta-feira (dia da Paixão e da mentira) completaram-se 30 anos de uma ruptura histórica na vida brasileira cujos terríveis efeitos econômicos, sociais e políticos ainda estão presentes. Tardarão a apagar-se.
Uma grande parcela da população, em particular os filhos do AI-5, não têm qualquer memória coerente desse período. Só tem a ética e assim mesmo implantada recentemente nos cara-pintadas. Esses são os jovens que construirão o futuro de nossa nação, e deverão incorporar nas suas preocupações o destino da maioria da população –que só tem memória das lutas e derrotas da sua vida cotidiana– sem o que não terão, eles mesmos, destino algum.
Este artigo é dirigido aos jovens universitários, sobretudo os de ciências sociais e em particular os economistas, os quais devem voltar seus corações e mentes para os problemas cruciais deste país, em vez de perder-se por descaminhos alimentados pelas superstições, nesta onda de neoliberalismo que parece não ter fim.
Oxalá possa ajudar também outros mais velhos a enfrentar com lucidez a avalanche de notícias que provocam a indignação de tantos, e a desesperança da maioria, hoje mergulhada num estado de espírito que nosso bardo Camões denominou de "uma apagada e vil tristeza". À sua famosa consigna: "Navegar é preciso", respondem a prudência popular brasileira que "em tempo de nevoeiro o velho marinheiro leva o barco devagar". Quer seja devagar ou retomando a viagem por mares nunca dantes navegados, é preciso ter claro no imaginário dos jovens que não querem ir para Miami e na vontade dos quadros públicos que têm de ir a Washington negociar pelo Brasil, qual é o mapa da luta na próxima década.
Antes, porém usemos a memória desta velha economista, já que o futuro só pode ser inventado a partir de uma leitura crítica de nosso próprio passado.
O regime autoritário teve três mapas nos primeiros anos de partida; o Paeg (Plano de Ação Estratégica de Governo), o PED (Plano Estratégico de Desenvolvimento) e o Plano Decenal. Se os alunos de economia consultarem os três, como deveriam, para não reincidir nos erros do regime, verificarão as incompatibilidades das rotas concebidas nos primeiros tempos.
O Plano Decenal paradoxalmente não tinha qualquer caráter estratégico limitando-se a fazer meras projeções macro-econômicas de uma situação ainda instável. Mas é importante relê-lo pois num dos seus capítulos está uma discussão técnica sobre as projeções monetárias que demonstra que então como hoje a "teoria convencional" era e é completamente inadequada para lidar com a inflação e com os fenômenos monetários deste país. Apesar do arrocho salarial e das reformas fiscal e do mercado de capitais, a inflação não nos abandonou e o BC nunca foi, nem poderia ser independente.
A pobre Cepal levou a culpa da manutenção do "modelo de substituição de importações" seguido pelos técnicos do regime, que obviamente não leram a sério o artigo seminal de Prebisch de 1949: "Problemas Teóricos e Práticos do Desenvolvimento Latino-Americano", nem a minha modesta contribuição à critica da mal chamada substituição de importações, que já em 1962-64 estava esgotada como paradigma econômico-social de uma sociedade que desejava o desenvolvimento econômico acima de tudo.
No caso do Brasil, país continental e de desenvolvimento regional desigual desde sua formação histórica, a ocupação capitalista do espaço (a chamada interiorização do desenvolvimento) sempre foi decisiva para o crescimento e politicamente complicada uma vez que a concentração do poder econômico e político nunca coincidiram regionalmente exceto por breves períodos da história brasileira. A sucessão de golpes de Estado e a recorrência da política de governadores sempre procurou respeitar porém dois interesses fundamentais e permanentes das "classes produtoras". A moeda e o câmbio sempre deviam valorizar-se ou desvalorizar-se para favorecer os poderosos. As empresas de construção civil e as grandes empresas agroexportadoras (fossem elas nacionais ou estrangeiras) deveriam ficar "livres" para promover a apropriação capitalista do espaço rural e urbano.
Estes elementos foram decisivos para a acumulação capitalista mesmo no mal chamado "modelo de industrialização por substituição de importações" quando começou a marcha para o oeste e a conquista da Amazônia e finalmente foi alcançado o fechamento da fronteira agrícola. O financiamento interno e externo dos grandes "projetos de impacto" sobretudo de infraestrutura e agroexportadores sempre entraram periodicamente em crise, pela fragilidade e caráter inflacionário de suas "engenharias financeiras" e pelo eterno problema cambial.
Os países periféricos estão inseridos em forma dependente (financeira e tecnologicamente) na chamada "divisão internacional do trabalho" e não possuem moeda conversível por definição, salvo quando estão dispostos a pagar a senhoriagem ao país dominante; Inglaterra no século 19 e Estados Unidos nestas últimas duas décadas do século 20.
A industrialização sempre foi por isso um processo truncado e interrompido pelas crises internacionais e quando isso ocorre, o patrimonialismo e o encilhamento financeiro do Estado são a regra, com o que a instabilidade da moeda e a restrição orçamentária sempre voltam como uma espada de dois gumes sobre nossas cabeças.
Precisamos ver-nos livres de algumas taras do nosso subdesenvolvimento para seguir adiante, neste fim de século, e provocar uma ruptura democrática radical com o nosso passado.
Herdamos do regime militar problemas agudos da população, espaço e dinheiro. O regime subordinou as condições de vida da população e a ocupação do espaço nacional ao capitalismo selvagem. Este impediu a reforma agrária que estava madura depois do período JK e promoveu uma ocupação predatória do território nacional com os consequentes movimentos migratórios, enormes e desordenados, que produziram uma massa de não empregáveis nas grandes metrópoles.
A subordinação de tudo à lógica do dinheiro acabou paradoxalmente por ameaçar destruir o próprio dinheiro, através da ciranda financeira e da moeda indexada. Esta última além de levar à separação da "moeda dos ricos" (indexada) da "moeda dos pobres" com suas consequências distributivas perversas, impossibilita a condução da política monetária e gerou primeiro uma crise da dívida externa e depois sucessivas crises de financiamento do setor público, que acabaram quebrando o Estado.
Uma agenda para a reconstrução do país precisa inverter a ordem de prioridades. Devemos começar pela população (e sua miséria), ali onde ela se encontra e não iludi-la com uma nova "marcha para o oeste". Isto significa que o ataque à pobreza, a retomada do desenvolvimento e a estabilização não podem ser postas como metas separadas.
A visão espacial de projetos estruturantes tem que combinar dois objetivos. O primeiro é o abastecimento de alimentos baratos às grandes cidades o que involve uma gestão cuidadosa da infraestrutura e das grandes redes de comercialização. O segundo é a reorganização cooperativa da pequena produção independente e de sua população na direção de uma urbanização consistente com a melhoria das condições de vida nas cidades pequenas e médias. Paradoxalmente, temos que começar a discutir outra vez, no final do século 20, a questão da "Lei dos Pobres", no centro do debate na Inglaterra nos séculos 18 e 19.
Finalmente, temos que enfrentar a questão do dinheiro. Não devemos dolarizar a economia e passar a pagar senhoriagem ao país emissor da moeda internacional decadente. A nova moeda, o real voltará inexoravelmente a ser indexada, a menos que se desmonte a ciranda financeira. Uma moeda única, de emissão exclusivamente pública deve ser, como são todas as moedas do século XX, uma verdadeira moeda fiduciária, apoiada apenas no poder político (e na confiança que nele tenham seus cidadãos).

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