São Paulo, domingo, 3 de abril de 1994
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"Literatura Alemã" de Carpeaux é um clássico

CLÁUDIA CAVALCANTI
ESPECIAL PARA A FOLHA

As últimas décadas do panorama cultura brasileiro foram marcadas pela presença de dois valiosos intelectuais europeus, ambos foragidos da Alemanha nazista. Agora, uma feliz coincidência traz de volta ao mercado editorial o judeu alemão Anatol Rosenfeld e o judeu austríaco Otto Maria Carpeaux, com os seus respectivos livros sobre a literatura de língua alemã.
Para marcar os 20 anos de sua morte, em 1973, toda a obra de Rosenfeld foi reeditada. Uma delas é a "História da Literatura Alemã", que, desprovida de notas, índice remissivo e bibliografia, consegue ser uma iniciação eficaz para quem quer ter somente uma idéia geral daquilo que representou, principalmente desde o século 18 até a metade deste século, uma das mais instigantes literaturas do Ocidente. Rosenfeld, que também escreveu sobre filosofia, cinema, teatro e até futebol, desenvolveu um estilo de texto muito característico seu –preciso, seco e sobretudo humanizador.
Na sua "História", ele parte dos primórdios da língua alemã e pára na literatura do pós-guerra, assinalada sobretudo pela divisão da Alemanha. Em apenas 168 páginas, o intelectual alemão quase sempre é obrigado a esquecer as preferências pessoais e tratar com bastante concisão e justiça praticamente todos os inúmeros nomes dignos de menção no amplo espectro daquela literatura.
Contudo, é inegável a preferência que nutre por Heinrich Heine, judeu como ele, e por Thomas Mann, cuja obra Rosenfeld consegue resumir magistralmente em parcas três páginas. O autor também acerta, por exemplo, no tratamento dispensado a Kleist, Hoelderlin e Jean Paul, autores de classificação difícil e que geralmente, não sem problemas, são considerados românticos pela maioria dos livros do gênero.
Judeu convertido ao catolicismo fervoroso e apreciado pelas nossas esquerdas (quando ainda estas claramente havia), Otto Maria Carpeaux, morto cinco anos depois de Rosenfeld, parecia possuir horizontes literários mais amplos do que o seu companheiro de exílio. A "História da Literatura Ocidental", de oito volumes, é impressionante pela erudição e capacidade de abrangência de seu autor. Obra que entre nós pode ser considerada clássica, ela teve a sua última edição em 1978, pela editora Alhambra. Em compensação, a Nova Alexandria volta a publicar a sua "Literatura Alemã", editada pela primeira vez em 1964 (Cultrix).
Numa época em que no Brasil mal existiam cursos de pós-graduação, não é difícil imaginar que, naquele tempo, fosse quase nula a produção nacional de obras como as de Carpeaux. Neste sentido, assim como Rosenfeld, ele é um pioneiro. Hoje, torna-se imprescindível partir deste pressuposto quando se lê "Literatura Alemã", que o autor define como "modesto serviço prestado à cultura brasileira".
Mais extenso do que a obra similar de Rosenfeld, o livro do intelectual austríaco pode ser desfrutado numa leitura mais fluente (porque menos entrecortada por minúsculos capítulos), em que ele tenta reunir ainda mais escritores e discorrer sobre eles com mais liberdade do que Rosenfeld. Às vezes, por isso, perde-se em meras demonstrações de erudição, repete-se e confunde o leitor no amontoado de escritores e obras. Além disso, seu estilo causa certo estranhamento, por conta das estruturas sintáticas pouco habituais na língua portuguesa.
Erudição exibicionista e repetição são apenas pontos críticos "secundários" do livro de Carpeaux. Frente à necessidade de esquematizar, de forma mais racional, os grandes períodos da literatura alemã, o autor peca por incluir, no capítulo sobre o Romantismo, por exemplo, autores como Stifte e Moericke, quando na verdade pertencem aos primórdios do Realismo. Também é duro encarar Hesse, Benjamin e Lukács listados no Expressionismo. O primeiro foi, no máximo, um contemporâneo próximo ao movimento. Os outros dois não podiam estar mais distantes dos jovens escritores daquele período (coisa que Carpeaux não menciona).
Em contrapartida, ele também acerta ao não inserir os três quase-românticos Kleist, Hoelderlin e Jean Paul no capítulo referente àquele movimento. Como homem de esquerda e católico, nota-se que Carpeaux tende a ressaltar autores de maior apelo popular, mas menos importantes no conjunto da história literária alemã) e/ou sua origem religiosa. Autores convertidos ao catolicismo ganham destaque, assim Gertrud von Le Fort, Joseph Roth e Heinrich Heine. A poesia deste último, porém, ao contrário do que acontece no livro de Rosenfeld, ganha sérias restrições, talvez porque o poeta sente feito uma opção pragmática ("para receber o bilhete de ingresso na civilização cristã", como cita Carpeaux) pelo catolicismo.
É claro que os deslizes aqui citados são apenas alguns em meio aos tantos acertos do livro. Como Rosenfeld, ele considera a obra de Thomas Mann um dos marcos da literatura alemã universal e enfatiza, mais do que o seu colega de história literária, a importância de Lutero para a língua alemã e consequentemente para a sua literatura. Em Carpeaux, é muito instrutivo e pormenorizado o capítulo sobre a República de Weimar, período difícil de ser resumido por conta da enorme diversidade de correntes literárias que se contrapuseram em meio ao turbilhão político e cultural de então.
Comparadas as duas edições, o livro de Carpeaux tem a vantagem de dispor de um posfácio atualizador de Willi Bolle, que abrange o "período-muro" da literatura alemã, entre os anos 60 e 90. Por outro lado, a bibliografia e a lista de obras capitais –fatalmente defasadas– também poderiam ter sido atualizadas, e o livro de Carpeaux não pareceria ainda mais corroído pelo tempo do que já é.
"Todas as sínteses são provisórias", escreveu Carpeaux na introdução da "História da Literatura Ocidental". Se entendida como síntese, "Literatura Alemã", obra de altos e baixos, também é provisória. A sua reedição é válida como documento; porque, passadas as décadas, o mercado editorial cresceu e já comporta obras similares mais arrojadas. Na linha de Carpeaux, de análise sociopolítica dos fenômenos literários, há o excelente germanista Viktor Zmegac, autor de uma das melhores histórias da literatura alemã dos últimos tempos. Diante das obras disponíveis em português, urge editá-lo.

A OBRA
Literatura Alemã, de Otto Maria Carpeaux. Posfácio de Willi Bolle. Capa de Juan José Balzi. Nova Alexandria (r. Urano, 215, São Paulo, tel. 270-8627, CEP 01529-010). 353 págs. 25 URVs

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