São Paulo, domingo, 3 de abril de 1994
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As metáforas da intimidade

MARINA MASSI
ESPECIAL PARA A FOLHA

A primeira impressão quando deparamos com um novo livro sobre Freud é de que a sua vida já foi amplamente descortinada nas diversas publicações biográficas ou historiográficas à nossa disposição. Mas trata-se de uma visão equivocada. Este aparente equívoco merece reflexão, ele pode revelar qual o grau da lente que temos usado para olhar o homem Freud –o fundador da psicanálise. Antes disso, porém, é importante que o leitor conheça a escritora Lydia Flem. Ela nos (re)apresentará a aquele que marcou com suas idéias a cultura ocidental neste século.
Lydia Flem é belga, com formação em sociologia e em psicanálise, é psicanalista filiada à Sociedade de Psicanálise belga e à Associação Internacional de História da Psicanálise, autora de "Le Racisme" (1985), com vários artigos publicados na "Nouvelle Revue de Psychanalyse, Revue de Psychanalyse", e membro da redação da revista "Le Genre Humain". É autora de "A Vida Cotidiana de Freud e seus Pacientes", editado no Brasil em 1988, pela L&PM editores.
A novidade de seu novo livro, "O Homem Freud" está em primeiro lugar, na concepção que a autora tem de que a melhor maneira de apresentar Freud ainda é via Freud, ou seja, utilizando o método psicanalítico para compreender o próprio pai da psicanálise. A origem do subtítulo "romance do inconsciente" está na convicção de Flem de que é possível o homem Freud a partir dos relatos, cartas, sonhos, leituras, família, desejos, auto-análise, vida cotidiana, enfim, do universo no qual o próprio Freud teceu o processo de criação de seu pensamento. Essa forma peculiar de investigação já estava presente no livro anterior de Flem, no qual afirma ser Freud "um mestre do cotidiano", que teorizou sua própria intimidade.
Assim, o "Homem Freud - o romance do inconsciente" é um convite ao leitor a colocar uma lupa e olhar o invisível –nem biografia, nem ensaio sobre as origens da psicanálise– é antes um passeio à moda da história das mentalidades, onde o detalhe tem importância e o cotidiano suas junções significativas. Daí sai um retrato de Freud até então não revelado.
A segunda qualidade do livro está na ampla pesquisa feita pela autora do universo cultural e científico da época, de como Freud foi elaborando os acontecimentos e utilizando-os na feitura de sua obra; a partir das metáforas da sua intimidade, tais como cidades imaginárias, estradas de ferro, ruínas do passado, máquinas ópticas, heróis civilizadores, detetives, enfim, analogias que pudessem auxiliar a circunscrever um objeto psíquico avesso à representação. É interessante como Flem vai evidenciando o quanto Freud era sensível aos fatos de sua época e sabia com maestria aproveitar o que se produzia de novo em outras áreas de conhecimento.
No capítulo chamado "O Arqueólogo" encontramos uma ilustração exemplar de como Freud se alimentou do progresso da arqueologia, que estava no auge das suas descobertas. Flem vai articulando os dados e mostrando que "Pompéia reaparece em 1748, as "Ruínas de Palmira" é publicado em 1753. Em 1754 dá-se a partida à Índia de Anquetil-Duperron, o inglês Stuart e o francês Leroy exploram a Grécia e Wincelmann funda em Roma a história da arte. "Antiguidades de Herculano" vem a lume em 1757. Não podemos esquecer que é nessa época que pela primeira vez o Ocidente teve acesso a um grande texto traduzido do sânscrito, a "Bhagavad-Gitâ". Em meados do século 19 surgem a América pré-colombiana e a pré-história. Em 1859 Darwin publica a "Origem das Espécies". Schliemann descobre Tróia em 1871 e as ruínas de Micenas em 1875 e no século Sir Arthur Evans descobre Creta. Como bem lembra Flem "já em 1749 proclamava Rousseau que o verdadeiro progresso do homem não está adiante, mas atrás dele." Assim, concluiu a autora que a fascinação de Freud pelo passado e pela origem é também a de sua época.
A "Interpretação dos Sonhos" de Freud mostra esse fascínio pela arqueologia e pelas disciplinas do passado sobre as origens da espécie, das línguas... Mas o que parece mais importante de ser destacado é como ele metabolizou tudo que borbulhava à sua volta, a sua genialidade estava em parte calcada na curiosidade e na liberdade de pensamento, para as questões e tendências do eu tempo. Afinado com o que estava sendo produzido, Freud deixava-se impregnar pelos acontecimentos e os utilizava na elaboração de algo pessoal frente ao universo que o cercava.
É esse Freud, vivo, atento ao presente e ao novo que surge da lente ampliada de Flem que nos leva admitir que muitas das metáforas psicanalíticas são advindas das experiências de Freud com sua época; e o que o livro nos incita a questionar é se a psicanálise de hoje consegue produzir suas metáforas ou se ela simplesmente reifica as metáforas freudianas.
Mas seria injusto com o leitor circunscrever o todo do livro num único capítulo, pois o trajeto dele é maior e passeia por outras facetas de Freud também importantes e curiosas: a sua paixão pela literatura, o seu lado colecionador de antiguidades, o seu apreço pela amizade, as suas viagens. Enfim, pode-se conhecer um pouco mais da vida privada de Freud e notar o quanto esta é indissociável de sua obra.
Para finalizar, gostaria de compartilhar com o leitor uma idéia que Flem lança em sua introdução que é tão convidativa quanto seu livro, que "em dois ou três séculos quando o tratamento psicanalítico já tiver deixado de existir há muito tempo, permanecerá sem dúvida nas prateleiras das bibliotecas, ao lado dos nomes de Shakespeare, Dante, Sófocles, Goethe, Proust, Borges, Perec ou Celan, o de Sigmund Freud." Talvez, devido também à sua formação sociológica, Flem não adota uma perspectiva religiosa ou mística da psicanálise.
Ao contrário, sabe que enquanto "Weltanschauung" (concepção de mundo) a psicanálise de Freud está com o início e o fim datado. No entanto, se for possível ao longo das próximas décadas produzirmos teorias e práticas capazes de lidar com as principais questões sobre o psíquico, aí estaremos atingindo um anseio de Freud de que a psicanálise fosse a ciência do inconsciente –um campo de conhecimento dentro das "Geiteswissenschaft" (ciências do espírito).
Como Freud recomendou em seu artigo "A questão da análise leiga" –"em psicologia, só podemos descrever com a ajuda de comparações. Nada existe de particular nisso, assim ocorrendo igualmente em outras áreas. Mas nós não podemos deixar de mudar incessantemente de comparações; para nós, nenhuma se sustenta por muito tempo." Ou, no seu livro sobre a "Interpretação dos Sonhos" quando diz que devemos estar sempre dispostos a abandonar as nossas representações por outras que julguemos mais próximas da realidade desconhecida. Freud sabia que as metáforas, as analogias, e os modelos não são eternos, e que não devemos confundir "os andaimes com a construção".
Flem resgata um Freud do passado em direção ao futuro, mostra como a sua atualidade está na clareza de que os dogmas são insustentáveis mesmo quando pareçam bastante sólidos; talvez aí resida a faceta científica da psicanálise que Freud tanto perseguiu em vida.
Ao fechar a última página deste livro, nós psicanalistas nos damos conta que somos chamados por Flem à difícil tarefa de pensarmos a nossa época e abandonarmos a postura acomodada de eternamente repetir as metáforas freudianas para fenômenos tão diversos.
Sem dúvida, não é mais um livro sobre Freud, mas um trabalho engenhoso e criativo que merece crédito para leitura, espaço em nossas estantes de consulta, e um diálogo vivo dentro de nós.

A OBRA
O Homem Freud - o romance do inconsciente, de Lydia Flem. Tradução de Álvaro Cabral. Campus (r. Sete de Setembro, 111, 16º andar, Rio de Janeiro, CEP 20159-900, tel. 021 221-5340, fax 252-2904). 288 págs. 18,90 URVs

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