São Paulo, domingo, 3 de abril de 1994
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Trevisan descarna a narrativa

BERTA WALDMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Por que são precisos dois, ó meu Deus, para fazer o amor?"
Dalton Trevisan (O Vampiro de Curitiba)

Um título contém sempre uma promessa e uma evocação. Isso porque ele alude, em sua anterioridade, ao que virá, ao mesmo tempo que forma parte integrante do texto que nomeia.
É esse lugar de antecipação que leva o leitor de Dalton Trevisan, ao deparar com o termo "haicai" do título, a avançar em sua leitura, mas também a recuar para um outro texto seu, onde o autor se refere a essa forma poética. Trata-se do prefácio do já clássico "O Vampiro de Curitiba" (José Olympio/Civilização Brasileira/Editora Três, 1974), onde o escritor declara que o destino de seu texto é o da subtração.
"Há o preconceito de que depois do conto você deve escrever novela e afinal romance. Meu caminho será do conto para o soneto e dele para o haicai".
Existe, de fato, o preconceito de que a novela e o romance são formas de elaboração mais complexas que o conto. Entretanto, sabe-se que a condensação presente no soneto e no haicai apresenta uma complexidade que é de outra ordem. Quando o autor aponta para essas formas poéticas cada vez mais sucintas e epigramáticas, ele está revelando um programa estético de enxugamento crescente, de silenciamento da linguagem, o que coloca o leitor diante de um paradoxo, já que o conto só existe na articulação da linguagem, e, na medida em que tem por meta o silêncio, ele aponta para o lugar de seu desaparecimento.
Esse paradoxo apresenta seus sintomas no embate entre fluxo da linguagem e atração do silêncio apreensíveis em diferentes níveis de construção da obra de Trevisan:
Nas metáforas que sobrepõem movimento e fixidez, do tipo: "Quem é João? É um pássaro de cinco asas", onde, ao movimento de alçar vôo inerente ao pássaro, soma-se o contramovimento dado pela imparidade de asas. João é um pássaro deslocado, pois mantém a virtualidade do vôo, mas as cinco asas o atam ao chão!
No plano sintático, observa-se um grande número de frases participiais, infinitivas, gerundivas, onde a redução corta o andamento da frase, criando áreas de silêncio que caminham na contramão da linguagem, emperrando o seu curso. Exemplo:
"Doente, quem te dava banho?"
"Em agonia, roncando e gemendo, afasta a boca medonha da velha."
"Chorando baixinho, o velho disca todas as combinações possíveis. Mas não acerta o número da própria casa."
No plano das figuras, a elipse é a que marca mais fortemente o estilo de Trevisan, criando hiatos de tal forma violentos que eclipsam o sentido da frase; Exemplo:
"Faça de mim tudo o que. Pode vir. A porta aberta."
O uso de clichês, de frases feitas, como fator construtivo articulador da linguagem, é outro dado que remete ao entranhamento do vazio no corpo da narrativa. Exemplo:
"Se não vier, morro de tristeza. Bebo formicida como guaraná. Ateio fogo às vestes. Me atiro da janela."
O conjunto desses elementos precipitadores da criação do espaço oco no interior da linguagem pode ser apontado como o responsável pela fragmentação do conto de D.T. Mas o que levaria o autor a perseguir a mutilação da linguagem, o silêncio?
Nos 187 haicais que enformam o presente livro, o que salta à vista é o seu processo de composição brutalista, que se resume basicamente no esquartejamento da narrativa tradicional, revelada em situação de crise: não há enredo organizado, não se respeitam os princípios elementares da composição do conto, precipitam-se os gêneros numa vala comum, a ponto de se chamar instantâneos narrativos de haicais.
Esculpindo a faca, preterindo qualquer gesto de sedução, D.T. cria com essas pequenas peças um lugar de resistência à literatura mercantilizada, porque não mima, mas agride e desnorteia o leitor com os cortes, as pausas, o silêncio, e, principalmente, com a paisagem do inferno onde insere a família e a ordem burguesa em geral.
Para compor os haicais, o autor se debruça sobre as próprias narrativas, e delas pinça fragmentos, transformando-os em uma espécie de cápsula verbal formada de diálogos, falas soltas que, reunidas, funcionam como síntese de uma vasta obra, impondo-se ao mesmo tempo como uma produção nova, minimalista, onde os poucos traços esboçam situações variadas que, no entanto, encontram seu denominador comum na solidão, na incomunicabilidade e na morte. Reduzidas a um quase-aforismo, à sua instância mínima, essas "narrativas" parecem perseguir a desarticulação e o sem-sentido da vida, contando e mostrando o vazio do cotidiano. Se o que essa literatura expressa e instaura é algo como uma aporia em si mesma insolúvel e irredutível, o autor não abdica, no entanto, do uso de um amargo humor para representá-la.
O primeiro haicai refere-se ao amor:
"O amor é uma corruíra no jardim –de repente ela canta e muda toda a paisagem."
O tom idílico deste haicai que incorpora o amor como possibilidade na paisagem da vida pode ludibriar por algum tempo o leitor incauto que imagine que o que está se anunciando é uma felicidade possível, porque imediatamente essa falsa impressão vai sendo recalibrada e a leitura dos outros haicais dará sentido ao primeiro.
"O coração da bem querida: ôco de pau podre, aqui floresce aranha, serpente, lacraia de fogo."
O amor é um duelo de morte, e as armas femininas são: a serpente que seduz, a aranha que prende, a lacraia que persegue, queima e mata.
A sintaxe do desejo que se vai esboçando procura unir o que não tem liga, porque homem e mulher não são aqui complementares na sua diferença; encalacrados, cães danados à procura do próprio rabo para morder ("Um cachorro danado que estala os dentes, João queria morder o próprio rosto."), cada um está fadado à solidão.
"O falo ereto - única ponte entre duas almas irmãs."
(7, grifo meu).
Fragmentados, ele é um falo; ela, uma perna:
"Na cama o João vem pra cima de mim. Uma transa lá entre ele e a minha perna, não estou nem aí."
Repetitivos na destruição do outro, ele mata com revólver.
"/.../ De repente o revólver explodiu na praça e levantou um bando de pombas.
Tão linda, Maria sangrava por três bocas. Ela já não era –um vestido vermelho fora do corpo."
Ela esfola lentamente.
"... olha para mim, assassina. Todo em carne viva. O corpo inteiro esfolado. E você, lambendo as unhas, impune.
É o crime perfeito."
Entre as várias possibilidades de relações intersubjetivas responsáveis pela inserção social das personagens, o autor privilegia a mais complexa: o sexo. A partir dele multiplicam-se os episódios de desencontros amorosos, carregados por forte tinta apocalíptica, onde a destruição –movida quer pela passionalidade desembestada, pelo ciúme, a prepotência, o machismo, a violência, o sadismo– incide sobre cada uma das personagens indistintamente.
O homem e a mulher que vivem o fracasso da relação amorosa pertencem à pequena burguesia da província de Curitiba e, em geral, não são nomeados, a não ser pelos mesmos João e Maria que atravessam a obra do autor, não são descritos ou apresentados, e o enredo que vivem não é modulado em pré-clímax, clímax e desfecho.
Como a questão que indaga sobre o sujeito é difícil de se sustentar nessas pequenas peças, porque nelas se apaga qualquer possibilidade de esboço da identidade, pode-se dizer que esses dispositivos verbais se instituem a partir de uma ausência.
"- Com essa megera não é que eu casei.

...

Me distraí um instante, a mulher foi trocada.

...

Em vez da noivinha dos meus sonhos, essa quem é, roncando ao meu lado, o bigodinho de meu sogro no nariz torto de minha sogra?"
Essa mulher com quem o homem se casou não é a noiva sonhada; porta o bigodinho do pai e o nariz torto da mãe. Dela mesma só o rosto que funciona como mero suporte indiferenciado que carece de traços distintivos.
Por outro lado, quem é esse homem que indaga sobre a identidade de sua mulher? Reduzida, no haicai, ao silêncio, ela é referida pelo homem que, por sua vez, fala sozinho, num território delimitado pelas marcas formas do diálogo. Quando cabe à mulher falar, segue-se ao travessão, o silêncio.
O haicai nº 61, além de outros mais, é construído segundo o mesmo princípio:
"- Alô, Alô?
Pelo silêncio era ele

Meu bem, João, que aconteceu? Por que não chamou?
Não podia mais de saudade. Eu te amo. Por que me castiga? Estou chorando, não vê?

...

Você ganhou. Eu sou tua. Faça de mim tudo o que. Pode ver. A porta aberta. Te espero nua.

...

Se não vier, morro de tristeza. Bebo formicida com guaraná. Ateio fogo às vestes. Me atiro da janela. Deixou um bilhete. Você, o culpado. Está ouvindo, João? Venha depressa. Não posso mais. Venha, seu desgracido.

...

Por favor. Por favor."
Nessa "conversa" só fala a mulher, armando-se no travessão que introduz a fala de João uma ponte para o vazio. E é no vazio que se projeta o suposto João. "Pelo silêncio era ele". A mulher, provavelmente Maria, apela para que João não a abandone. Mas os argumentos que utiliza são vazados no clichê do dramalhão, pondo em circulação uma fala batida, falada, moeda corrente que não remete a um sujeito. Então, quem é João? Quem é Maria?
Ao lado de outras figuras congeladas (o velhinho safado, o doutro, a jovem na flor da idade...) João e Maria estão presos a uma cena amorosa que se repete à exaustão:
"Guerra conjugal: as mil e uma batalhas sujas de trincheira, entre baratas e ratões, os pés na lama, tossica a metralhadora, gás mostarda no pulmão, carga suicida de baioneta, a boca no arame farpado, mina explode a tua virilha, o que mais?"
Os escombros dessa guerra são a vida evaporada: "uma luva de crochê vazia" (147), "um vestido vermelho fora do corpo" (21). É o que sobra também na exumação dos cadáveres: "a longa meia de seda", "as barbatanas da camisa", "alguns botões", "o rosário de contas negras", e o "dentinho do ouro" que precisa ser salvo da cupidez dos coveiros. (ver nºs 151, 182 e 183).
Ora, ao texto fragmentário, encapsulado, equivale o homem intransitivo, solitário, alienado. Sem nome e sem face, sua inserção social, no entanto, é clara, e sua fala se amolda a uma língua coloquial bem brasileira, que, por sua vez alberga e ativa a expressão da violência e da autoviolência, reflexo político dos mais agudos de nossa deterioração social. Através de personagens urbanas que a linguagem marca como sendo de classe média baixa, porém de algum modo deslocadas do centro (porque moram em bairros distantes ou nos subúrbios de Curitiba), D.T. expõe a castração desse homem periférico, ao mesmo tempo que comenta um modo de ser da sociedade liberal de arremedo que o chamado capitalismo tardiamente avançado produziu no Brasil. É por essa via que se entende tanto o estilo "menor" por ele utilizado, quanto a estética kitsch onde se insere sua obra como um todo.
Por outro lado, há um quê de paródico na defasagem da província que tem na mira a metrópole, no plano rebaixado das personagens instalado irreversivelmente, no fato de o autor reescrever a mesma história. Mas no último caso, a questão é controversa, porque o que é paródico não deixa de sê-lo, mas é, também, contraditoriamente, o eco de uma escritura fechada, feita de avanços e recuos, de autocitação. Este dado de isolamento, de ausência de referências externas, é o antípoda da paródia, porque não permite a comparação, a relativização, a extensão. Aí, Curitiba é um espaço dobrado sobre si mesmo que vive de sua própria substância, seu habitante é particular e único, e o autor, ilhado, cativo de uma história interminável.
Neste sentido, do ponto de vista formal, o conto de D.T. não está nunca constituído completa e perfeitamente, de uma vez só e para sempre, mas se elabora em relação a uma outra estrutura, que recupera e torna a pôr em circulação. Assim, a fruição dos haicais não está na novidade, mas na tensão entre o reconhecimento e o espanto diante da nova apresentação do já conhecido.
Nesse processo de exumação das próprias narrativas, o autor parece buscar aquilo que nelas resiste: o osso, o ouro. Descarnalizadas, o esqueleto trincado, nenhum eco metafísico, nenhuma ressonância psicológica, só mesmo a superfície dilacerada. Um retalho bruto de vida.
Desarmado o lirismo que abre o livro no primeiro haicai, o autor fecha a série apontando a única forma possível de amor.
"Em toda casa de Curitiba João e Maria se crucificam aos beijos da mesma cruz".

A OBRA
Ah, é? - ministórias, de Dalton Trevisan. Capa e ilustrações de Poty. Record (r. Argentina, 171, Rio de Janeiro, tel. 021 585-2000, CEP 20921-380). 137 págs. 9 URVs

O AUTOR
Considerado um dos principais contistas do Brasil, o escritor paranaense Dalton Trevisan nasceu em Curitiba, em 1926. Tornou-se conhecido com "O Vampiro de Curitiba" (1965). Seu primeiro livro de contos foi "Novelas Nada Exemplares" (1959). É também autor de "A Polaquinha" (1985) e "Pão e Sangue" (1988).
Não dá entrevistas e não se deixa fotografar. Segundo ele, precisa preservar o anonimato por ser um "espião de almas"

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