São Paulo, domingo, 3 de abril de 1994
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Dramaturgo foi mito nos anos 50 e 60

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Mantiveram em segredo a "causa mortis" de Eugène Ionesco, mas ninguém se surpreenderia se ele tivesse morrido de desgosto. Desgosto por ter sido há muito esquecido, ao contrário de alguns de seus contemporâneos, como Beckett, Genet, Sartre e Camus, permanentemente presentes na mídia, nas polêmicas e nos repertórios teatrais. Faz tempo que o enterraram artisticamente, assim como a outro expoente do Teatro do Absurdo, Arthur Adamov –reviravolta inimaginável 40 anos atrás, quando o autor de "Rinocerontes" era o "ne plus ultra" da ribalta inconformista, frequentava os mais renomados enclaves intelectuais do planeta e era citado até por quem nunca assistira a uma peça de sua autoria.
Qualquer coisa absurda, desde que não tacitamente kafkiana, trazia de imediato à memória o dramaturgo romeno. "Parece até peça de Ionesco" tornou-se um comentário corriqueiro nos anos 50 e 60, inclusive no Brasil, onde o dramaturgo só perdia em ibope para Brecht, cujo teatro didático, aliás, detestava. O auge de sua fama entre nós data do final dos anos 50. Raramente o prestigiadíssimo Suplemento Dominical do "Jornal do Brasil" chegava às bancas sem um texto de ou sobre Ionesco. Mais badalado do que ele, naquela época, talvez só o trio Sartre/Camus/Merleau-Ponty. Nos últimos meses de 1960, recebemos sua visita. Veio acompanhar de perto os ensaios de um novo grupo teatral carioca, o Teatro Jovem, empenhado em difundir suas peças no eixo Rio-São Paulo.
Naturalismo asfixiante
Festejava-se então o primeiro decênio do Teatro do Absurdo. Ou melhor, o décimo aniversario da estréia de "A Cantora Careca" no teatro Noctambules, em Paris. Curioso ano o de 1950. Por razões diversas, uma ou duas bem óbvias, deu-se ali a primeira florada cultura do pós-guerra, com Ionesco agitando o palco (ou, como ele preferia dizer, "libertando-o do naturalismo asfixiante"), David Riesman incrementando a sociologia pop com "A Multidão Solitaria" e a dupla Pollock-De Kooning arrasando na Bienal de Veneza. Cinema? Covardia. "Crepúsculo dos Deuses" (de Billy Wilder), "Rashomon" (de Kurosawa), "O Segredo das Jóias" (de John Huston), "A Malvada" (de Joseph L. Mankiewicz) e "Cronaca di un Amore" (de Antonioni) foram lancados em 1950.
Certo, situações e personagens absurdos era o que não faltava no teatro de Pirandello, O'Neill, Brecht, Arthur Miller, Jean Giraudoux e Jean Anouilh. Mas o "approach" lógico, racional e psicológico daqueles autores os impedia de ousar o que Ionesco e Beckett, sobretudo estes dois, sem o menor vínculo com o teatro tradicional e suas convenções dramáticas, ousaram fazer. Reagiam todos à mesma perplexidade existencial: o homem não pediu para nascer nem para morrer, e muito menos para passar a vida dentro de um único corpo e aprisionado à razão. Só Ionesco e Beckett, porém, a questionaram de uma forma anarquicamente absurda, anti-realista e antipsicológica. "O realismo é tedioso", alegava Ionesco, "e confina a imaginação".
Nada mais alienante, para ele, do que a identificação dos espectadores com os personagens de uma peça. "A Cantora Careca" foi o seu primeiro manifesto pela abolição de heróis, intrigas, catarse e outros pilares da dramaturgia a obter sucesso em Paris, abrindo caminho para "A Lição", "As Cadeiras" e outras farsas mórbidas, vez por outras ininteligíveis e convictamente niilistas, que nos conduziam a um beco sem saída, onde nos esperavam o caos e a destruição –na melhor das hipóteses, o silêncio.
Quando abriam a boca, seus personagens soltavam mais platitudes do que Bouvard e Pécuchet. Descobrir a poesia da banalidade e dos clichês foi um achados de Ionesco, mas com o tempo isso também se tornou um lugar-comum, um clichê enfim.
Contrariando o gosto da maioria, Susan Sontag considera "Jack, ou a Submissão" superior a "Cantora Careca", quase que desprezando o resto da obra de Ionesco, a cuja "complacência intelectual" não deu tréguas num ensaio publicado em 1964 pela "New York Review of Books". Seu mote era um livro de reflexões do autor sobre teatro. Sontag escandalizou-se com as platitudes do dramaturgo. Ele afinal se expressava como, que absurdo, os seus próprios personagens. Avalie esta pérola: "A verdadeira obra de arte é acima de tudo uma aventura da mente".
E compare com esta: "Meu desejo no momento é me tornar imortal e depois morrer". Esta não foi dita, nem escrita, por Ionesco, e sim por Parvulesco, aquele dramaturgo blasé encarnado por Jean-Pierre Melville em "Acossado" (A Bout de Souffle). Como se vê, em 1959 Godard já não tinha Ionesco na conta de um autor respeitável.
Audácia verbal
A ferrenha pinimba de Ionesco com qualquer tipo de arte socialmente comprometida exasperou a tal ponto o crítico teatral inglês Kenneth Tynan, que este, num assomo, deflagrou uma polêmica pelas páginas de "The Observer", em 1958, na qual Orson Welles acabaria pegando carona. Sem deixar de reconhecer o "aplomb imaginativo" e a "audácia verbal" de suas primeiras peças, Tynan acusou Ionesco de haver criado "um mundo de robôs solitários", servidos por diálogos de histórias em quadrinhos, "às vezes hilariantes", mas "algumas vezes profundamente cansativos".
Ionesco respondeu com elegância as acusações, repetindo uma de suas frases de efeito prediletas: "Nenhuma sociedade conseguiu abolir as tristezas, nenhuma política nos libertou do mal-estar existencial, do nosso medo da morte, da nossa sede de absoluto".
"Nenhuma obra de arte tampouco", replicou Tynan. "Ambas procuram fazê-lo. Haveria outra coisa a fazer?"
Welles, que dois anos depois montaria "Rinocerontes" com Laurence Olivier em Londres, encerrou a controvérsia com as seguintes e sensatas observações: "Não é a política que é a inimiga suprema da arte, é a neutralidade que nos priva do sentido da tragédia. A neutralidade é uma posição política como outra qualquer, e inúmeros são os confrades do sr. Ionesco que puderam meditar suas consequências na única torre de marfim verdadeira que nosso século erigiu: o campo de concentração".

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