São Paulo, segunda-feira, 4 de abril de 1994
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Em defesa de São Paulo?

ANTONIO CANDIDO

Há dias foi publicado um manifesto intitulado "Em defesa de São Paulo", com 21 assinaturas que, a julgar pelas das pessoas que conheço, podem ser consideradas de grande peso, sobretudo porque muitos firmaram indicando as instituições que representam e cuja autoridade parecem querer jogar na balança, como Associação Comercial, Academia Paulista de Letras, Unibanco, Instituto de Engenharia, Museu de Arte, etc. Nem faltou um ex-governador do Estado.
O objetivo é apoiar iniciativas da atual administração municipal, que os signatários consideram de grande mérito, mas estariam sendo obstadas por "ataques sistemáticos, motivados pela radicalização política", de maneira por vezes violenta. Por isso, alertam a população para que "esteja atenta aos verdadeiros interesses da cidade, rejeitando ações de confrontação radical e irracional".
O exemplo que dão de violência se refere ao aterro de Itatinga, mas a enumeração inicial engloba a "extensão da av. Faria Lima, a privatização da CMTC, a continuidade do sistema viário Sudoeste-Centro e a urbanização das favelas, entre outros".
Isto e o nexo geral do manifesto podem levar o leitor menos informado a pensar que em todos os casos citados há ação irracional e violenta de maus cidadãos, querendo por motivos políticos atrapalhar obras necessárias. Não sei o que ocorre nos outros casos mencionados, mas sei (porque faço parte dele desde o começo) o que se passa no movimento contra o prolongamento da avenida Faria Lima nos termos propostos, ou melhor, impostos.
Este é dos tais projetos referidos no manifesto como originários de administrações anteriores, tendo sido concebido num tempo em que as condições de ocupação da área eram bastante diferentes. É certo que ele facilitará a fluidez do trânsito, em benefício sobretudo de quem tem automóvel. Mas destruirá muitas casas, perturbará uma vida regional razoavelmente equilibrada e poderá promover o deslocamento forçado de grande parte dos moradores sob a pressão de interesses imobiliários privados.
De fato, no começo da atual administração ele foi apresentado, não apenas como prolongamento da avenida, mas como remanejamento completo de uma grande área, para criar os chamados "boulevards", intervindo numa larga faixa dos dois lados dela, obviamente para atender aos referidos interesses.
Ante a reação veemente e organizada dos moradores o plano mudou e agora é apresentado como simples prolongamento, acarretando só demolições indispensáveis e prevendo áreas adjacentes nas quais poderão ser efetuados acordos para empreendimentos imobiliários. Os antecedentes levam a indagar se não se trata de um adiamento dos gigantescos projetos iniciais, que poderão ser retomados na hora oportuna.
Tudo isso tem sido exposto melhor por especialistas qualificados: arquitetos, urbanistas, juristas, sociólogos. Aqui, desejo apenas mencionar as razões que desde logo condicionaram o meu ponto de vista.
Sou contra este projeto, como tantos outros moradores, não apenas porque resido na Vila Olímpia há mais de 30 anos (embora em local que ao menos por enquanto não parece ameaçado), mas sobretudo pela convicção de que na administração pública há uma escala de prioridades a ser observada. Se não for, nunca serão resolvidos os problemas que afetam a maioria da população, relativas a moradia, saúde, escola, transporte.
Diante do estado lastimável em que vivem as populações desvalidas de São Paulo, este e outros projetos podem ser interessantes e até justificáveis, mas não são impreteríveis. Quando é que os homens responsáveis desta cidade deixarão de lado a concepção ornamental, voltada para o conforto da minoria, e começarão a pensar em planejamentos de fato racionais, voltados para os interesses reais de todos?
Outro motivo, também partilhado por quase todos os moradores da Vila Olímpia que tomaram posição, é o desejo de preservar, além da moradia de cada um, em geral adquirida com muito sacrifício, a integridade de um bairro modesto mas equilibrado, que nesta cidade difícil conseguiu funcionamento adequado.
É portanto injusto nos atribuir segundas intenções de caráter político, desejo de arruaça, sabotagem às autoridades, como se pode pensar com base no manifesto. Numa administração muito diferente da atual sob todos os pontos de vista, a de Luiza Erundina, houve a mesma intenção de retomar o projeto Faria Lima, embora sem os complementos especulativos.
Nós nos movimentamos, como agora, mas sem necessidade de ir tão longe, porque conseguimos convencer aquela administração; com certeza porque era mais sensível à dimensão humana da cidade e não tinha compromissos com grandes interesses privados. Não se trata, portanto, de uma ação mal-intencionada contra esta ou aquela administração.
Dos signatários do manifesto, conheço apenas quatro. São homens honrados e respeitáveis. Como não conheço os outros, não tenho motivos para achar que sejam diferentes. Penso então no seguinte, sempre em função do nosso caso: estarão eles devidamente informados a respeito? Conhecem os seus bastidores financeiros? Já pensaram no problema do urbanismo predatório e monumental em São Paulo? Terão elementos seguros para achar que estão mesmo defendendo o interesse da população? Por que não analisam de perto o que está acontecendo?
Por outro lado, se viessem às nossas assembléias, veriam que, apesar da revolta crescente, que gera a veemência contra a atual administração, o que está em jogo não são pressupostos políticos: é um movimento de legítima defesa.
Não nos façam, portanto, a injustiça de pensar e dizer que somos maus cidadãos, como não lhes faremos a de insinuar que estão defendendo, não o interesse da população, à qual se dirigem, mas outros diferentes, que englobam a política de depredação urbana sem planejamento racional diretor, em benefício de empreiteiros e incorporadores.
Para terminar, quero dizer que estou pensando também nos moradores de Pinheiros e afirmar que vamos todos continuar na luta, porque estamos certos de que os sacrifícios que nos querem impor não são justificados pelo interesse coletivo. Mas lamentamos incompreensões como as desse manifesto.

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