São Paulo, terça-feira, 5 de abril de 1994
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O engodo do século

ROGÉRIO CÉZAR DE CERQUEIRA LEITE

Uma sociedade de serviços é extremamente frágil e não resistiria a concorrências naturais
Este nosso século de vertiginoso progresso científico e técnico, por absurdo que possa parecer, também é um período de grandes fraudes e inacreditáveis sucessos de inesperáveis charlatães.
Há engodos como aquele denominado "Os protocolos dos sábios de Zião", forjado em 1903 com o intuito de justificar perseguições aos judeus na Rússia, ou ainda a conspiração em torno das jóias de arte gótica ocidental iniciada com uma esperta falsificação por um ambicioso comerciante de antiguidades, Herbert Marwitz, mas que serviu para reforçar as teorias de superioridade cultural da raça ariana de Alfred Rosenberg.
Este dogma veio a ser usado como justificativa de ordem histórica e cultural a Hitler para a anexação do "Sudeteland", primeiro passo para o início da 2ª Grande Guerra Mundial. Mas há engodos puramente mercantis. O mais característico foi o chamado "Terceiro Olho" do Lhama Rampa Lobsang, da década de 60. Escreveu ele 17 livros sobre o assunto e ficou multimilionário. Milhares de pequenos imitadores de Rampa existem, a metade na Califórnia, o resto em Brasília e Washington. Um deles prometeu 23 livros. A seita chama-se neurolinguistica.
Na fronteira entre a charlatanice mercantil e a perversa estão as fraudes do famoso Cyril Burt, que com adulterações e montagens de testes de inteligência procurou justificar preceitos de eugenia. Na mesma categoria se encontra Lycenko, para quem a manipulação de dados, sobre a transmissão de caracteres adquiridos em vários programas de importância econômica para a União Soviética, permitiu alcançar enorme poder sobre os destinos profissional e individual de seus pares.
Uma outra categoria de fraude, mais benevolente talvez, é aquela motivada por ideologia. Talvez tivesse sido o caso desse controvertido charlatão, Paul Kammerer que teria observado um exemplo de transmissão de caracteres adquiridos, uma calosidade nas patas do sapo macho da espécie conhecida como "parteira".
A transmissão de caracteres adquiridos era considerada afim ao socialismo, em contraste com a teoria dominante de mutações ao acaso e subsequente seleção do mais apto considerado compatível com o capitalismo. Ciência e ideologia nunca se deram muito bem. Kammerer teve que se suicidar.
A análise destes, e de outros casos de engodos mostra uma característica comum. As repercussões e as consequências sociais são proporcionais à espectativa do grupo social que neles se envolvem. Assim foi com os ignóbeis casos do "Protocolo dos Sábios do Zion" e das Jóias Góticas Arianas.
Também o deplorável dogma da transmissão de caracteres adquiridos, fosse pela via autoritária representada por Lysenko, fosse pela benevolente inépcia de Kammerer, alcançou tanta repercussão porque suas consequências eram desejadas por segmentos expressivos da sociedade. E mesmo os charlatães que vendem cura e poder sobre o corpo e a mente respondem a inseguranças e necessidades características do momento histórico.
Pois bem, não é pois uma grande surpresa que seja o capitalismo que tenha gerado o grande engodo deste século, a saber, o mito da sociedade pós-industrial. E o principal propagandista do mito foi o bem intencionado e competente Daniel Bell.
Ele vê a evolução econômica como uma sucessão de estágios de desenvolvimento, em que o primeiro foi o agrícola, o segundo o industrial e o terceiro seria representado por serviços, especialmente aqueles baseados em conhecimento. A idéia é sedutora principalmente onde foi lançada, nos Estados Unidos da América. Que bom que seria trocar empregos mal remunerados em siderúrgicas pestilentas por altos salários de executivos de telecomunicações.
O argumento fundamental de Bell é baseado na mudança de ênfase no trabalho. Em 1950 a indústria norte-americana absorvia 50% da sua força de trabalho e a agricultura 20%. Hoje estes percentuais são 20% e 3%, respectivamente. Bell certamente usou outros números, pois seu livro foi lançado em 73. Para Bell, os EUA já estaria se tornando uma sociedade de serviços com 70% de sua força de trabalho neste setor. Mas a produção industrial norte-americana não havia sido reduzida, nem tampouco a agrícola. Muito pelo contrário, houve aumentos elevados, tanto da produção agrícola quanto da industrial.
O incremento de produtividade nestes setores desde 1950 foi tão grande que podemos ter certeza de que em qualquer país medianamente desenvolvido não será necessário ocupar mais que 10% ou 20% de sua força de trabalho nos setores agrícola e industrial.
Mas apenas os EUA e alguns de seus satélites (dentre eles o Brasil) acreditaram no mito da economia pós-industrial. O Japão, talvez por causa de razões mais culturais que racionais não acreditou.
O Japão moderno tem suas raízes no Shogunato Tokugawa que tomou como base de sua estabilidade social a reativação do sistema tradicional de castas em que abaixo do samurai vinham o artesão e o agricultor e em última posição o comerciante, contrariamente ao que ocorre na hierarquia das castas indús, por exemplo, e nas estratificações informais da culturas ocidentais.
Em 73, a indústria de telecomunicações, semicondutores e informática na Alemanha estava tão atrasada que aquele país obsessivamente buscava uma recuperação naquele setor essencial. Não havia tempo para divagações.
Finalmente, foi em 1991 revertido o argumento básico de Daniel Bell por Cohen e Zysman que reformularam a analogia com a agricultura. Mostraram ainda que a agricultura gerou setores industriais e de serviços que estão indissoluvelmente ligados aos setores agrícolas que o promoveram e que o mesmo ocorre entre setores industriais e de serviços.
É ridículo a idéia básica da sociedade pós-industrial que exportaria, por exemplo, suas indústrias de "hardware" e de equipamentos de telecomunicações e espera se manter fornecendo serviços no setor de comunicações, tais como pesquisas, inovações, projetos, software etc. Ora, quem fabrica os equipamentos não aceita esta situação permanentemente. Uma sociedade de serviços, seja ela concebida em nível de nação, ou de província, ou de cidade, é extremamente frágil e não resistiria a concorrências naturais.
Todavia, uma mudança deverá ocorrer pois o aumento de produtividade nos setores agrícola e industrial não foi acompanhado por progresso equivalente no setor de serviços. A realidade é que para cada cidadão produzindo alimentos, energia, bens em geral, haverá entre cinco e dez outros chefes de família prestando serviços. Esta situação desequilibrada perdurará até que venha a ocorrer um aumento de produtividade no setor de serviços.

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE, 61, físico, é professor emérito da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e membro do Conselho Editorial da Folha.

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