São Paulo, terça-feira, 5 de abril de 1994
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Os trinta anos de 64 fizeram nossa cabeça

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Há uma região interior de nós mesmos chamada Brasil. O Brasil mudou muito dentro de nós. Não falo de uma descrição figurativa da história recente. Falo mais de um ritmo que muda de 1964 para cá, ritmo de silêncios e de vozes, um rítmo de vida interior que foi mudando nos últimos trinta anos.
Como descrever este jassa contínuo? A História só muda realmente por baixo dos fatos. Há uma revolução silenciosa e mental sob os acontecimentos. O que mudou nas cabeças?
Antes de 64, o ritmo das coisas tinha a linearidade sucessiva de um filme acadêmico. Em nossa cabeça, o país era um todo, ameaçado por uma varia "direta" que não romperia o contrato imaginário de uma luta "cordial".Falavamos muito em "luta de classes", mas não acreditávamos nela. Não conhecíamos a violência dos ideais reacionários. Nossos mais revolucionários eram ingênuos solidaristas. Diziam: "nosso exército é democrático e de classe média". "A burguesia nacional é progressista". Só o latifúndio e o imperialismo eram o mal.
Rompeu-se em 64 o sonho de que as idéias sozinhas mudavam o mundo. Não tínhamos mais futuro harmônico.
Nada descreve o choque do surgimento súbito de Castello Branco na capa da revista "Manchete". Nunca ouviramos falar daquele anão fardado (mais tarde vimos que era o mais democrata), que tinha a feiúra de um superego sádico. De repente, tívemos a sensação de que estavamos errados.
Um general sem pescoço mandava em todos nós, acima de nossas "sagradas massas". Grande trauma. Aprendizado: o casual pode ser mais forte que o desejo coletivo. Todos nos sentíamos culpados diante do olhar severo dos generais. Que havíamos feito de errado?
64 tinha sido bem mais que um golpe militar, mas só olhávamos nossos óbvios inimigos militares. Outro erro, 64 foi um golpe dado pelo desejo conservador das elites patriarcais diante das massas surgidas na industrialização. Foi um golpe também dado pela classe média ignorante "de direita" com medo de sua ala "de esquerda".
A esquerda era o braço inconformista e generoso desta ignorância de classe média. Em 64, começamos a sentir na pele a solidão desamparada dos proletários que não participaram de nada, nem contra nem a favor.
A adesão à 64 foi impressionante. Descobrimos que nossos pais, nossos tios, todo mundo era conservador.
A idéia de que o país era um projeto positivo que evoluíia, (Brasília, bossa-nova, etc) parou ali. Antes, não havia a idéia de "transgressão" no país. A cultura que flutuava num progresso feliz, passou a ser "contra". Surgiu um negativismo óbvio mirando só contra os militares. Auto-crítica, jamais.
64-65
No entanto, ainda havia espaço para a liberdade. Castello, o feio, era um "democrata" e, assessorado pelo inteligentíssimo Roberto Campos, tentou modernizar a economia. Foi das poucas épocas sensatas dos últimos trinta anos: reforma fiscal, estabilização monetária, crítica aos monopólios (Castello queria flexibilizar a Petrobrás). Mas não pôde.
Foi pressionado por dois getulismos: o getulismo da esquerda vencida e o getulismo inercial que havia nos quartéis. Paralizaram Castello Branco. Nunca as esquerdas poderiam ter entendido este momento casualmente "moderno" com Campos e Castello, em 65. A esquerda brasileira sempre odiou as tecnicalidades da economia real. Só se pensava em "macro-esquemas", em idéias gerais. Quem tinha saco para ver a inteligência do programa de Bob Fields? Era cero demais.
E começaram as passeatas pela "liberdade" (a liberdade resolveria tudo), num país semi-aberto, com permissão de Castello e depois até do bonachão Costa e Silva. Aos poucos, nos sentíamos de novo cheios de razão, o sal da terra, legitimados como vítimas. Nunca fomos tão puros como de 64 até novembro de 68. Nossa clareza era total. A desobediência abstrata das esquerdas foi a sopa no mel que propiciou a edição do Ato Institucional nº5.
68
Um raio partiu a vida e a solidão se instalou dos dois lados. Os militares ficaram sozinhos. Todos ficaram sozinhos. A consciência nacional conheceu a morte. Não falo só da tortura ou da violência. Falo da morte na alma. Isto foi útil.
Quem não viveu de 69 a 72 não sabe o que é loucura, piração de consciências. Acabou de novo a idéia de "povo unido", e começou a época dos francos atiradores, dos heroícos guerrilheiros suicidas ou dos jovens pirados no ácido, todos soltos em paisagens vazias e áridas. Saímos da ilusão para o desespero. Assim, foi se triturando a consciência de gerações que deram nesta massa imensa de desinformados.
A política econômica do "milagre" foi um delírio de Brasil potência que escondia uma obediência às multinacionais, criando um país concentracionário, com a exclusão das massas miseráveis. Nem reforma agrária nem educação. Só estatismos retumbantes, financiados pela necessidade bancária internacional.
Anos 70
A solidão instalada nos fez mergulhar na crença da mudança de comportamento cultural, buscando saídas individuais, mágicas, místicas. Aí sim, foi sexo e drogas e loucura. Santo Deus, jovens punks, vocês não sabem o que é "viajar" de ácido numa ditadura.
Era uma mistura de "strawberry fields" com guerra do Paraguay. Ou caíamos no oportunismo pré-yuppie ou desbundávamos nas "bad trips" do suicídio da guerrilha, ou no ódio à lógica racional que nos dera tantos fracassos.
Mas, à medida que a crise do petróleo se acentuava surgiu a "abertura" política de Geisel (não por acaso). Petróleo e alma, menos petrodólares mais "liberdade" –sinistra ligação entre o mercado financeiro e nossos desejos. À medida que nossa capacidade de endividamento diminuía, crescia a demanda por democracia.
Incrível: à medida que Geisel "abria" a política, engessava a economia. A própria euforia estatista e anti-imperialista dos anos 60 tinha sido fruto da sobra de dólares na banca internacional. Ironia suprema: até a cultura da esquerda nacionalista foi financiada pelo "imperialismo". "Hobby losses" –luxos do sistema internacional.
Diminuía o dinheiro, aumentava a oferta de liberdade. Quem ditava as regras? Os militares? Não: a marcha das coisas. Fomos presos para contrair a dívida externa e "libertados" para pagá-la.
Oitenta e noventa
A partir da abertura gradual, as vítimas da ditadura" – corrompidas pela nobreza de "injustiçadas" – começam a ansiar pelo retorno à liberdade.
E os anos 80 viram todos de mãos dadas pelo "amor à Patria", de Quércia a João Alves, na ingênua ficção de que todos somos irmãos contra o Mal autoritário. "Diretas Já", Tancredo, Sarney, sabemos bem que sob o manto da liberdade, o país foi pilhado, arrombado pelas "vítimas da ditadura". Nos últimos anos, tivemos uma grande desilusão com os conceitos gerais e "nobres".
A verdade do Brasil se mostrou coloquial, feita de pequenos ladrões, ridículos enigmas políticos, emperramentos técnicos. Hoje sabemos que todos fazemos parte da estupidez secular do país. Sabemos que isto não é privilégio de militar. Saber de nossa doença talvez seja o início da sabedoria. Prefiro estes brasileiros envergonhados de hoje, aos rostos iluminados dos jovens inocentes de antes.

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